sábado, 26 de abril de 2008

Líquido não identificado

Transparente com uma espuma suspeita no topo. O copo transpira. O líquido agora compõe menos da metade do recipiente. Levo à boca. Não está gelado, não está quente, está agradável ao toque. O paladar me chama, o gosto é doce e cítrico. Concentrado. Meus dentes passam por uma sensação engraçada, como se a fruta grudasse neles. Engulo devagar, propositalmente, para apreciar. Deposito o copo de vidro na mesa, o branco da espuma suspeita desce lentamente até alcançar o restante do líquido. Fico a reparar e pensar.
Esse gosto me trás sensações e lembranças. Lembranças de uma época em que eu sabia aproveitar. As coisas não costumavam passar por mim despercebidas, não senhor. E quando digo coisas, digo todas as coisas. Céu, terra, flor, pássaro, besouro. Homem, mulher, criança, idoso, mendigo, ricaço. Aquilo que meus olhos captavam. Tudo que eu tocava tinha algum sentido. Costumava observar os relevos, as superfícies, as curvas. Era muito curioso, aquilo. Perguntas incessantes, sim, eu costumava tentar descobrir de onde vinham aquelas coisas. Os sons não me escapavam, até os mais rotineiros, até o tic-tac do relógio. Pra mim, algum sentido tinha que fazer. O cheiro das coisas, aquela particularidade. Porque cada coisa tem um cheiro diferente? Tentava descobrir o que era aquele cheiro, de onde ele vinha. E o gosto, ah, o gosto. Essencial. Nada pra mim tinha o gosto ruim, apenas um gosto. Único e surpreendente.
As coisas precisam de um porquê. Mesmo que este não seja respondido nunca, é necessário que exista. Às vezes me pegava olhando para o mundo, e pensando no porquê. Um porque sem porquê.
Hoje, não sei mais de porque nenhum. O Sol nasce, dia começa, o dia passa, a Lua se põe, o dia acaba. O menino passa, eu toco a porta, eu ouço buzinas, eu cheiro lixo, eu tomo água, o Sol nasce, o dia começa, o dia passa, a Lua se põe, o dia acaba. E o porquê... Ahn, pra que porquê? É mais prático assim. Nunca aprendi a regra dos quatro porquês, tenho preguiça deles.
"As pessoas mudam. Estão em constante mudança". Levanto, pego o copo, ando, chego à cozinha. Num movimento brusco, lá se vai o líquido transparente pelo ralo da pia.

terça-feira, 22 de abril de 2008

A crônica dos "bom dias" e das "boa noites"

Santiago sentou-se em seu escuro, porém confortável quarto, na escrivaninha de leitura. Uma brecha dos raios de sol penetrava pelas cortinas pretas e sufocantes, atingindo diretamente o aquário do peixe dourado Smith, provocando um efeito psicodélico em suas águas levemente sujas. Ao sentar-se, perdeu-se um pouco em seus devaneios, daí lembrou-se porque estava ali e tratou de procurar uma caneta, um lápis, um carvão, ou o que quer que seja que pudesse escrever. Esse processo levou cerca de cinco minutos, devido ao estado em que se encontrava o quarto de Santiago. As roupas jogadas por todos os lados dificultavam a visualização dos móveis e do chão, os papéis desorganizados e rasgados sobre o assoalho não ajudavam. Enfim, localizou uma caneta bic preta, jogada num canto qualquer. Voltou à cadeira de madeira, catou um papel branco. Ficou a encará-lo, sem encontrar palavras para dizer ou para escrever. Destampou a caneta, encarou mais um pouco o papel branco, que de tão branco já o cegava as vistas.
Acho necessário, quando se chega a certo ponto da narrativa, explicar um fato importante para que demos prosseguimento à dita cuja. Moço com seus vinte e cinco anos, Santiago vivia só. Ele e Smith levavam uma vida cheia de complicações, como qualquer vida que se preze. Trabalhava, estudava, tinha pouco dinheiro para pagar uma empregada. Seu pequeno apartamento era a desordem em apartamento, sempre recheado de comida espalhada pelos cômodos, tralhas jogadas por todos os lados, roupas, sapatos, mofo, poeira. Necessitava desesperadamente de uma vassoura e um desinfetante. Acontece que tal solidão provocava em Santiago um desejo pela comunicação. A vontade de ter pessoas ao seu redor era substituída pela sede por palavras e pela urgência em falar. Santiago não tinha com quem falar, a não ser com Smith. Era um indivíduo tão não-comunicativo que não tinha o hábito comum nem de dizer "bom dias" ou "boa noites" para o porteiro do prédio em que morava ou, talvez, a moça da lanchonete em que por vezes comia. Resolveu, então, dar um fim nesse conflito interno incessante. Chegou a conclusão de que a melhor solução para acabar com sua vontade era organizar os pensamentos e escrevê-los em uma folha qualquer, como forma de desabafo íntimo.
Pois foi exatamente nesse momento que deixamos Santiago, nesse momento seu, momento de expressão. A comodidade com tanta desorganização pareceu não realizar bons feitos. Nosso caríssimo Santiago, agora determinado, enfrentava mais uma desavença. Não parecia ter condições de criar sequências de palavras para que pudesse escrevê-las e, dessa forma, dizer o que fosse. Encarava o papel branco. Precisava dizer, não podia ademais suportar esse silêncio eterno. Mas como? Nada lhe ocorria, nada lhe vinha ao pensamento. Agora, no seu momento, na sua hora de falar, no auge de seu desejo, não podia. Faltavam-lhe conjunções. Faltavam-lhe letras. Tinha que comunicar ao mundo, comunicar a si mesmo, quem era Santiago, qual era seu destino, qual era sua opinião, o que sentia, o que não sentia. Smith nunca o entendeu, nunca o respondeu, nem o correspondeu com qualquer expressão diferente do que aquela mortice de nascença.
O rapaz de vinte e cinco anos pousou a ponta da caneta no papel branco e iniciou uma sequência de movimentos curvilíneos que se assemelhavam à escrita de qualquer coisa. A caligrafia de Santiago não era nem nunca havia sido bonita, devo dizer nem sequer entendível. A dificuldade para entendê-la sempre foi comum entre as pessoas aleatórias que o cercaram no decorrer de sua curta vida. Isso foi problema pra ele na escola. Os professores o obrigavam a usar cadernos específicos para treinar sua grafia, porém de nada era útil. Nunca sua letra havia perdido seus traços fortes, triangulares (sim, triangulares) e embolados.
Algo brotou no topo do papel. Algo que, se meus cálculos estiverem precisos, parecia-se com um "bom dia". Então, no fim da página, Santiago repetiu o procedimento. Brotou de tal forma algo que, confiando novamente na precisão de meus cálculos, parecia-se com um "boa noite". Após tamanho esforço, pousou a caneta sobre o papel não mais totalmente branco. Recostou-se na cadeira de madeira por alguns segundos, respirando fundo, recompondo-se. Estava leve. Poucas palavras lhe haviam tirado sentimentos do peito que nem eu nem você poderíamos imaginar. Ergueu-se, fechou a pequena brecha da cortina pela qual passava o raio de sol que se refletia no aquário de Smith e saiu do quarto, fechando a porta e deixando seu mais novo companheiro de desabafo sobre a escrivaninha de leitura.