domingo, 4 de maio de 2008

Nas profundezas de uma máquina

Ela não estava bem, não estava nada bem. Fez esforço para que seus músculos cansados girassem a chave da porta. Entrou cambaleando em seu apartamento, largando o salto alto em qualquer canto. Jogou a bolsa por cima do sofá na primeira oportunidade e sentou-se no chão, recostando-se na parede, aflita. Olhou pensativa por alguns momentos para seu jarro indiano. Era muito bonito, ela havia trazido da Índia em tempos remotos, onde a felicidade era facilmente encontrada, quando tudo era colorido e divertido. Sua realidade atual não era como no passado. As coisas andavam conturbadas, o tempo lhe era curto. Como se nada mais a satisfizesse, o sono sempre tomando o lugar das pequenas horas de lazer que costumava ter. Seus dias não passavam de filmes de ação em câmera lenta. O esforço era o maior motivo de sua sobrevivência. Não podia mais ler, ver filmes. Alguém acelerava o relógio durante as noites.
E era esforço não recompensado. Esforço cheio de injustiças, onde terceiros eram privilegiados. É uma lei irreparável. Sempre acontece, em todo canto, a toda hora, todo dia. É uma lei porca. Uma lei porca seguida por porcos. E não havia nada que pudesse ser feito, apenas arcar com as consequências dessa lei maligna. Além de regra, era corrente. Os terceiros privilegiados nunca, nem que quisessem, romperiam-na. O instinto do ser humano era mais forte, e o autobenefício gritava com gosto.
Seu pensamento voava longe, e a raiva apoderava-se de cada entranha de seu corpo. Era como se tudo que ela fizesse não a pertencesse mais. Era como se tudo fosse pouco, como se todos exigissem mais. Envolveu seu rosto com as mãos, a veia da testa se sobressaindo, as rugas de preocupação se mostrando. Todo o significado da vida havia desaparecido. Carpe Diem, dia após dia. Isso não existia mais. Passava diante de seus olhos. Ela era espectadora de sua própria vida. E tudo isso por causa da natureza do homem, por culpa da lei de murphy. Não era justo que outros transformassem seus dias num inferno terreno.
Chorou. Chorou por um bom tempo. Ficou uns quarenta minutos ali chorando. E então parou, finalmente, e tornou a encarar o vaso indiano. Via aquele vaso com outros olhos, depois desses quarenta minutos. O que antes era o desejo por um passado glorioso, era agora um conforto. Um conforto porque esse vaso lhe falava, agora. Ela havia sido feliz. Se certa vez foi, porque não seria novamente?
Levantou-se, pôs ambos os pés inteiramente no chão e olhou o céu estrelado pela varanda de seu apartamento. A luz das estrelas sugava seus olhos molhados. Caminhou lentamente até lá, com passos firmes e suaves. Pôs-se de pé, vendo a rua lá embaixo, tornando a erguer a cabeça e encarando as estrelas. A brisa bateu em seu rosto, ela fechou os olhos para sentir. Abriu os braços. Sentia como se pudesse voar. Sorriu. Era algo que as pessoas costumam chamar de "esperança" brotando nela novamente. A autoconfiança parecia estar entrando dentro dela, ali, naquele momento.
Então espreguiçou-se e voltou para dentro do seu apartamento, quente e aconchegante. Pegou uma água com açúcar na cozinha, ligou Elvis Presley em sua antiga vitrola e pôs-se a dançar, consigo mesma. Era hora de recomeçar. Ela veio pra este mundo. Não pode deixá-lo passar.

3 comentários:

Unknown disse...

Isso aii, gostei ^^
Vc escreve mto bem, caramba u.u
=**

João Expletivo disse...

É importante ao escritor saber deixar que o momento possua o ambiente de criação, os instrumentos ambos : papel e caneta. Você consegue se fazer fluir facilmente em letras, pontos e vírgulas, tem destreza com "as palavras certas", isso requer talento. Sim, há um mundo de palavras com o mesmo significado semântico, mas apenas algumas poucas conseguem traduzir com rigor a tacitude das idéias, das emoções.
Não pare de escrever, adoro a forma como você se expressa, me lembra Clarice Lispector.
Post Scriptum : "tacitude" é um neologismo, vem de "tácito".
;*

Pedro_QE disse...

Há vasos indianos escondidos nas menores coisas. Assim como você, estou tentando encontrá-los. Encontrei um sexta... As coisas andavam difíceis.
Escreva um livro.
É sério.
Eu compro.
:**