Todos os bons professores que já cruzaram por minha história me disseram que datas são apenas números. O que importa, na verdade, é compreender o pensamento por trás das ações, o jeito peculiar a cada civilização de ver e lidar com o mundo. Ótimo, internalizei a informação como dogma. Acontece que não consigo me esquecer dessa data específica. Era sete de janeiro de dois mil e oito.
Acordou primeiro um espírito que seguia em uníssono comigo desde que éramos girinos não-alfabetizados. Seus olhos azuis e míopes despertaram incomuns. Tomamos café rapidamente e conversando demais, catamos nossas muitas coisas e saímos. A trilha sonora do céu foi da Lucy com seus diamantes, nós estávamos ocupadas conversando com as nuvens. Logo nos encontrávamos num lugar diferente. Para esperar, comemos toblerone enquanto observávamos a loirice de um menino pequeno que passeava sozinho com seu snorkel pelo aeroporto de Belo Horizonte. Ele nos notou e veio puxar papo, nos contar sobre os acampamentos com seus pais, cada qual com dreads mais bonitos e embaraçados, e nos dizer o que pensava sobre o desmatamento do mundo. Separamos-nos de Luan e descemos no mal-cheiroso Porto Seguro. Na balsa que nos levaria para longe do cheiro ruim e das pessoas barulhentas, tentamos fotografar uma sósia da Fernanda Lima. A água balançava nossos corpos, nos arrancava umas risadas bobas. Chegando à ilha, descemos uma calçada de pedra estreita e envolta por casinhas, chalés, restaurantes e hotéis. Nosso primeiro quarto era no segundo andar, tinha uma varanda virada para um café que carregava eventuais músicos nos bolsos. Lady era o nome da baiana que gerenciava a pousada. Ela utilizava vassouras como instrumento de trabalho e gostava de salvar meninas de lagartixas abusadas. Contava repetidas vezes sobre como havia testado seu pai alcoólatra com um litro de cachaça. Adorava programas de TV que narravam desventuradas picadas de cobra em pobres melões alheios. Enquanto brincávamos de água e ironizávamos o gosto das pessoas locais pela dança do aero-bahia, François Civil cozinhava miojos artesanais para nós. Jogávamos cartas até o cair da noite, que iluminava a rua com cores diversas e espalhadas. Subíamos as pedras para jantar e tomar sorvete na sorveteria do incansável coelho bisonho, que nunca parava de pedalar sua bicicleta automática. Num dia, quando era hora de dormir, sentamos junto ao mar e contamos 516 estrelas. “Nenhum dia é comum”, Jostein Gaarder me sussurrava ao pé do ouvido. Nosso segundo apartamento tinha um jardim que dava para o já fundido azul do véu que nos encobria maternalmente. Um pedaço de bolo pela manhã, protetor solar fator 50 nas peles branquelas, caminhada ao longo do mar até a solidão das falésias. Eu segurava a mão dela, que não enxergava as ondas e suas fábulas: Oe, Oe, cantavam para nós. A vontade era de nadar até onde o mar fica azul. “Um dia tudo aquilo lá vai ser nosso”. Fiz aniversário, deixamos nossos cabelos ao natural, me tornei o maníaco da colher de pau num fim de tarde tedioso. Compartilhamos sapatilhas iguais, coloridas e com bolinhas-doença. Botamos os pés para fora dos limites do chão para que desempenhassem seu número para o mar, que os lambeu delicadamente. Dançaram The Clap Clap Song sem mistério. Fomos embora, a família me agradeceu por ser eu. Nunca mais senti vontade de ser outra pessoa.
5 comentários:
Em expressão não há o que dizer. Envolve, acalenta, parece aquele beijo na testa que diz o quanto se quer bem. É.
Algo como que: No princípio do amor, olhar
a escuridão; depois, os galgos prematuros da alvorada.
No princípio do amor, morte de amor antes da morte.
Amor. A morte. Amar-te a morte.
Sexos que se contemplam perturbados. No princípio do amor
o infinito se encontra. (Paulo M. Campos)
Parabéns Francis! ficou ótimo!
Que bom ler isso! hahaha amei como você se lembrou dos mínimos detalhes (: ressucitou muitas boas lembranças, e eu ri bastante. Deu saudade. Nunca vou me esquecer desses dias!
um pedaço de eternidade
Me lembrei bem de você me contando dessa viagem.
Você escreveu esse texto maravilhosamente bem... sem que soasse uma mera descrição de viagem... mas uma verdadeira literatura... bem ao estilo do Gaarder que você mencionou.
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