domingo, 29 de junho de 2008

A incrível não-sei-o-que

Uma fresta na janela estava aberta. Por ela entrava o sol amarelo de um dia recém amanhecido, o ar gélido de uma cidade desacordada e os micróbios, bactérias e tudo aquilo que corrompe o ar que respiramos. Soraide estava deitada num sofá vermelho vinho, bastante velho e desbotado, que se encontrava na sala de estar. Ela havia ganhado o sofá em seu casamento, como presente da querida e amada sogra. O casamento não deu certo e o maldito levou de tudo mais precioso, exceto o sofá cor vinho de péssimo gosto. Por baixo de sua cabeça pendia um travesseiro branco e gordo, seguido por uma colcha amarela que lhe cobria até a ponta do nariz.
Soraide respirava profundamente, vagarosamente, fazendo seu abdômen dançar num ritmo compassado. Uma pelagem comprida e marrom escorria do topo de sua cabeça. Suas pálpebras cobriam a branquidão de olhos adormecidos. O restante do corpo todo estava imóvel, intocável, desligado. A mulher estava longe, em outro plano, num jamais conhecido por qualquer um em sã consciência. Quem a pilotava era agora a subconsciência, que deixava seus desejos e pensamentos ocultos expostos, através de metáforas muito bem boladas. Seu cérebro provocava, algumas vezes, movimentos inesperados em parte do corpo qualquer, como por exemplo o dedão do pé.
Alguma coisa a fez voltar, voltar para o mundo que conhecemos. Sua consciência adentrou em sua mente, como um velho maroto que entra em casa depois de longas férias no caribe. Num longo suspiro e gemido, moveu-se. Ergueu os braços, alongou-se, ainda de olhos fechados. Cada músculo foi esticado, quase provocando um estalo imaginário. Seu pescoço de fato estalou, assim como seus dedos, embora estes tenham sofrido provocação. Finalmente abriu os olhos e encarou o teto branco de seu apartamento. De imediato, começou a pensar, como se o fato de acordar virasse o botão on/off de sua consciência para o modo on. Pensar no que deveria fazer hoje, em como o dia seria cansativo, no cara que havia conhecido na noite passada.
Sentou-se no sofá, olhou para o lado direito e deparou-se consigo mesma. Defronte ao sofá encontrava-se um velho rack, que também tinha sido presente de casamento e que também tinha sido deixado pelo maldito ex-marido. Na porta do meio, cujo interior não nos importa no momento, estava um espelho. Espelho meio arranhado, meio sujo, mas que continuava com uma perfeita reflexão do objeto diante de si, que atualmente era Soraide.
Encarou seus próprios olhos e a imagem à sua frente. Percebeu, pela primeira vez na vida, como era estranha. Era bizarra. Aquelas duas bolotinhas brilhantes que tudo podiam ver e dois resquícios de pêlo por cima destas. Um buraco rosado com coisas cortantes e brancas por dentro. Uma forma esquisita modelada por cartilagem com duas fendas que sugavam ar. Duas partes que surgiam de um longo e vertical tronco e resultavam em artifícios com cinco outras partes, que por sua vez eram utilizadas como pegadores. O tronco dividido, que por fim terminava em formas achatadas que a punham de pé. Sem falar do interior. Sistemas, canos, líquidos, texturas, formatos. Tudo isso que punha algo incrível em funcionamento, um mecanismo puxando o outro, ordenados por uma central de comando bem no topo.
Era um ET, uma árvore, um robô, um projeto. Repentinamente, sentiu-se sensível. Ela, Soraide, era incrível.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

O Teatro da Vida apresenta: Comédia e Tragédia, as Contradições Siamesas do Conceito Humano

[Entram a Comédia e a Tragédia, cada qual comportando-se de acordo com sua personalidade já evidente. Comédia fazendo estripulias e sorrindo de forma marcante e exagerada, mexendo com todos os espectadores da platéia. Tragédia bastante emburrada, de cara fechada, lançando um olhar desconfiado para as pessoas que as cercam. Comédia inicia o diálogo].

Comédia: Ó, mas que lindeza! Os pássaros estão a cantar, o Sol está a raiar, as pessoas estão a sorrir, as formigas estão a trabalhar! Ó mas como é bom mover-me, pular, me sentir viva! Que beleza é jogar um sorriso ao amigo que precisa ou ao inimigo que não precisa!
Tragédia: Não sei como pode ser tão ingênua, minha cara. Não sei como consegue sorrir quando crianças estão a morrer, o mundo está a ferver, o fim está a surgir. Com essa preguiça, com essa fome, com esse cansaço eterno, essa rotina que mata, esses dias que nunca acabam, que vão sendo vividos sem começo, nem meio e nem fim.
Comédia: Oras, mas é claro! A melhor solução é não aderir! Que não deixemos as coisas ruins de nós conta tomar, para que vejamos rabugentos em todo lugar! O brilho, a luz, a paz, os sentimentos lindos e tudo que há de mágico prevalece! E ocupa um lugar tão mais especial no coração e no olhar das pessoas que me faz querer gritar de alegria!
Tragédia: Não, não. Frívolas, maquiavélicas e egocêntricas são as pessoas. O superego e o id, juntos, superam o ego sempre que possível. Mais alto fala o autobenefício. Porque não comprar um lindo carro se eu puder? De pouco importa a eles o sofrimento do outro desde que não afete a si mesmo.
Comédia: Como é possível não ver! Relacionamento social qualquer não é mais importante do que a pureza que faz o planeta girar! Do que o caminho de bem e de paz que devemos seguir! Do que o ar puro, o céu azul, a vontade de abraçar o mundo e cuidar dele! O maior, o infinito, o algo mais que temos!
Tragédia: O coração não vê aquilo que a mente não quer que ele veja. A mente do ser humano para o dinheiro está voltada. Capazes de qualquer coisa eles são. Até mesmo de uns aos outros manipular, brincar de uma brincadeira feia chamada sociedade, que engana, que controla, que faz do corpo um robô.
Comédia: O corpo é uma maquina impressionante que a ninguém obedece! Somente aos sentimentos mais profundos da alma transparente e aos pensamentos mais sinceros de um cérebro maravilhoso! É extraordinariamente fascinante, o ser humano e tudo que ele cerca! Aprender sempre coisas novas, ó, mas que lindeza!
Tragédia: Os pensamentos mais sinceros não existem. O que são programados pra pensar, eles pensam. Seus conceitos formados são a partir de uma série de convenções por eles utilizadas. E essas todas convenções e normas, essa falta de pensar, esse ciclo repugnante através do qual vive o ser humano o faz esquecer de todas as coisas que o cercam.
Comédia: Todas as coisas são maiores do que o próprio ser! É uma perfeição, é grande! Todas as cores que enfeitiçam os olhos, os gostos que arrancam suspiros, os cheiros que capta o nariz, as texturas que fazem de tudo real, os sons graves, agudos, o vento, a liberdade, o correr, o sentir que tudo vale. O sexto sentido, que intui, que percebe, que guia! A vida, o mundo, a individualidade... é por tudo, tudo isso que cá estamos nós!
Tragédia: É por tudo, tudo isso que cá nós não devíamos estar. Os animais homo erectus são uma maldição. É um fator destrutivo que tanto destrói, tanto que chega a pulverizar sua própria vida todos os momentos. Seu habitat. Sua ambição mata, o enlouquece. O Tudo não merece um parasita, uma praga, um sistema, um livro de regras.
Comédia: Por mais que você negue, antítese minha, eu sou necessária. Mais do que necessária, eu existo, e é graças a mim que a humanidade ainda não tomou fim!
Tragédia: E por mais que você negue, paradoxo meu, eu sou necessária. Sou eu quem puxa o aprendizado, por mais duro que este seja, e é graças a mim que a humanidade vai tomar seu fim.
Comédia: O Bem. O Otimismo. Que faz parte do mundo.
Tragédia: O Mal. O Pessimismo. Que também faz parte do mundo. Tanto quanto você.
Comédia: De fato... Somos também humanas. E ambas fazemos parte de nós mesmas.
Tragédia: E é através desse conceito humano que vivemos. Um meio termo entre a comédia e a tragédia, o bem e o mal, o otimismo e o pessimismo.

[De mãos dadas, entrelaçadas, quase unidas, quase transmutando-se em siamesas, saem de cena Comédia e Tragédia].