quinta-feira, 28 de abril de 2011

L

Parei de sentir meus dedos no momento em que pisei fora de casa. A câmera nova que instalaram no elevador me intimidou. Caminhei cortando o frio e o escuro com a esperança de não sentir-me tão sozinha ao sentar-me comigo mesma num dos cafés mais movimentados que conheço. Ou de encontrar alguém. Um rosto cuja rostidade me era melancolicamente familiar. Devia ter-me deixado tomar pela euforia que senti ao te ver pela única vez ali, me perfurando a alma como se a tivesse visto crescer. E eu me comportando como se não fosse assim. Sentei e pedi um capuccino, o barista - que um dia havia me dado um chocolate quente com caramelo para que o café não me tirasse o sono - não se lembrou de mim. O líquido trocou calor com meus órgãos e então pude me lembrar da vergonha que senti quando te reconheci por completo. Não obtive certeza mental de sua identidade, mas uma certeza sensível. A experiência de contar pássaros e observar besouros há onze anos foi que me voltou. Arrepiei-me sem o frio que hoje fazia. Não sei se senti vergonha da situação, vergonha da passagem do tempo por dentro de nós, ou se senti medo do teu poder infindável de dilacerar meu espírito. Esse poder ainda me atingia da mesma forma que fez sorrir os oito anos dos meus olhos. Tive medo do caos do universo, que nos convergiu aqui naquela quinta-feira, há exatamente duas semanas. Tentei mudar de página, reiniciar um texto, escrever minha crônica de turista, mas não pude. Minhas palavras só queriam sair para a lembrança tua. Nunca mais ouvi de ti e muitas vezes tentei te achar pelas ruas. Você foi uma aparição, percebe? O frio está desolador, pedirei a conta e vou-me embora. Não sei se volto aqui. Talvez volte todas as quintas-feira que se seguirão a esta. Nem mesmo sei se você se lembra de mim. Mas teu espectro, saiba você, me despertou para a existência de alguma coisa essencial. Lembrei-me da força pura e inerente que pode conectar dois seres humanos acima deste mundo. Por isso, obrigada.

F.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Não sei ser turista

Tem alguma coisa respirando através das páginas molhadas de meu caderno. Respirando através de mim, como que aumentando os limites de minha pele. E é apenas por esta razão que motivo-me a, também, respirar.

A menina sempre verde e sempre encantada foi para o meio do mato e sorriu para as pessoas invisíveis por medo de se perder. As folhas e as pessoas passavam por dentro dela com a mesma rispidez e rapidez; adjetivos que ela internalizava e, por imitação, botava em prática como se fossem verbos. Pressionava as coisas para fora e para ver se entravam coisas novas. Se a alma das pedras e das flores despertavam sua calma, se suas ações humanas desprendiam olhares sorridentes, se o barulho dos bichos do mato sacudiam a água para fora do texto e o texto para fora da água.  Alegava que era pra ter tempo de chorar pela existência. Para ter certeza que seu corpo é de terra e que a terra é feita duma correnteza de palavras, tinta, atmosfera e pedaços de sensações.

Querida, me abrace com seus braços inefavelmente transcendentais. Não tenho vergonha de ti.

Título pós-textual: consolando-me nas possibilidades de devir

Jeff Buckley me arrancou lágrimas desvairadas enquanto eu lia forçosamente um texto sobre literatura barroca. Estava tentando - e continuo nesta ilusão - ignorar umas bolhas por dentro da minha pele que ardem e cutucam-me os nervos. Só sei falar de devaneios mentais, análises camonianas, filosofia metafísica, existencialismo renascentista e fazer alguns barulhinhos fonéticos intercalando toda a falação.
Compartilho da teoria de que nossa geração é inteiramente constituída por pequenas personas explosivas. Não somos acomodados - como todos adoram acusar-se-, apenas participamos de uma revolução silenciosa, já que, socialmente, estamos vivendo um tempo de tudos. Falei tanto e continuei falando (mesmo que por dentro de mim) que tive dor de cabeça antes mesmo de ouvir o barulho da construção que se segue numa parte do meu prédio. Os processos mentais estão me estonteando e, pouco a pouco, me direcionando para o contrário de explodir. Essa explosão das pequenas personas tem sido, para a pequena persona de meu cérebro inacabado, tão imprescindível que não encontra buraco por qual sair e acaba provocando uma espécie de implosão forjada. Poderia presumir que as bolhas incômodas vêm daí. Presumiria qualquer coisa se essa quantidade exacerbada de inferências não estivesse podando-me a existência. Continuo tendo certeza - com influências descarteanas - da importância de existir. Para pensar devo, antes, existir.
O próprio Renato Russo, com toda sua perdição em si mesmo, não conseguiu entender como todos podiam continuar dormindo diante da única coisa que era no mundo: o amor. É ele a única coisa que alimenta a quintessência humana. Tenho lutado contra o vento e contra a falta de canetas para mantê-lo vivo nas minhas percepções espirituais. Por todas as coisas que respiram e em seu estado sublime de altruísmo, estou falhando. Atualmente - além do Elvis e da grama - amo apenas a meu próprio pensamento. Sinto ciúmes do que não consigo amar totalmente por duvidar do caráter do próprio amor. Não confio que as coisas sejam imutáveis, porque tudo flui. O amor não é alguém que nunca vai me abandonar, mas a sombra dele sempre beliscará meus olhos para lembrar-me de que fui idiota ao deixá-lo perder-se de mim. Não confio na sua permanência, ele foi e não volta. Só reside no meu próprio ego mental, nas reflexões caóticas e perigosas do meu, então, falso coração. Vejo o absurdo desse egoísmo ridículo. Queria apegar-me a mim, apeguei-me tanto que meu suado self respect voltou-se contra a bruxa estima e enfeitiçou-a para que ficasse do tamanho que lhe convém a alma.
Expus o cenário do meu paradoxo. Não posso ser, porque só amo a meus pensamentos, que não são vivos para respirar. Como amar algo que, pela minha falta de existência, não existe também? Amo nada, portanto. Iludo-me na condição de ser amante do mundo. Jeff Buckley estava certo esse tempo todo, assim como minhas fiéis bolhas alérgicas.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Uma crônica de viagem

Todos os bons professores que já cruzaram por minha história me disseram que datas são apenas números. O que importa, na verdade, é compreender o pensamento por trás das ações, o jeito peculiar a cada civilização de ver e lidar com o mundo. Ótimo, internalizei a informação como dogma. Acontece que não consigo me esquecer dessa data específica. Era sete de janeiro de dois mil e oito.
            Acordou primeiro um espírito que seguia em uníssono comigo desde que éramos girinos não-alfabetizados. Seus olhos azuis e míopes despertaram incomuns. Tomamos café rapidamente e conversando demais, catamos nossas muitas coisas e saímos. A trilha sonora do céu foi da Lucy com seus diamantes, nós estávamos ocupadas conversando com as nuvens. Logo nos encontrávamos num lugar diferente. Para esperar, comemos toblerone enquanto observávamos a loirice de um menino pequeno que passeava sozinho com seu snorkel pelo aeroporto de Belo Horizonte. Ele nos notou e veio puxar papo, nos contar sobre os acampamentos com seus pais, cada qual com dreads mais bonitos e embaraçados, e nos dizer o que pensava sobre o desmatamento do mundo. Separamos-nos de Luan e descemos no mal-cheiroso Porto Seguro. Na balsa que nos levaria para longe do cheiro ruim e das pessoas barulhentas, tentamos fotografar uma sósia da Fernanda Lima. A água balançava nossos corpos, nos arrancava umas risadas bobas. Chegando à ilha, descemos uma calçada de pedra estreita e envolta por casinhas, chalés, restaurantes e hotéis. Nosso primeiro quarto era no segundo andar, tinha uma varanda virada para um café que carregava eventuais músicos nos bolsos. Lady era o nome da baiana que gerenciava a pousada. Ela utilizava vassouras como instrumento de trabalho e gostava de salvar meninas de lagartixas abusadas. Contava repetidas vezes sobre como havia testado seu pai alcoólatra com um litro de cachaça. Adorava programas de TV que narravam desventuradas picadas de cobra em pobres melões alheios. Enquanto brincávamos de água e ironizávamos o gosto das pessoas locais pela dança do aero-bahia, François Civil cozinhava miojos artesanais para nós. Jogávamos cartas até o cair da noite, que iluminava a rua com cores diversas e espalhadas. Subíamos as pedras para jantar e tomar sorvete na sorveteria do incansável coelho bisonho, que nunca parava de pedalar sua bicicleta automática. Num dia, quando era hora de dormir, sentamos junto ao mar e contamos 516 estrelas. “Nenhum dia é comum”, Jostein Gaarder me sussurrava ao pé do ouvido. Nosso segundo apartamento tinha um jardim que dava para o já fundido azul do véu que nos encobria maternalmente. Um pedaço de bolo pela manhã, protetor solar fator 50 nas peles branquelas, caminhada ao longo do mar até a solidão das falésias. Eu segurava a mão dela, que não enxergava as ondas e suas fábulas: Oe, Oe, cantavam para nós. A vontade era de nadar até onde o mar fica azul. “Um dia tudo aquilo lá vai ser nosso”. Fiz aniversário, deixamos nossos cabelos ao natural, me tornei o maníaco da colher de pau num fim de tarde tedioso. Compartilhamos sapatilhas iguais, coloridas e com bolinhas-doença. Botamos os pés para fora dos limites do chão para que desempenhassem seu número para o mar, que os lambeu delicadamente. Dançaram The Clap Clap Song sem mistério. Fomos embora, a família me agradeceu por ser eu. Nunca mais senti vontade de ser outra pessoa.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Fim de tarde, eu dormia. Sonhava, naturalmente. Estava seguro com meus costumeiros espectros animais. Parei de sonhar, conscientizei-me de que dormia. Acordei, ao que parecia. Tentei abrir meus olhos e eles não me responderam. Por frestas embaçadas, vi que me encontrava em minha cama, deitado. Tentei virar para os lados, não pude me mover. Meus olhos não abriam. O ar pesava sobre meu corpo, comprimindo-o, impedindo-o. Estava paralisado. Meu cérebro não entendeu, tentava persuadir meu organismo, que conscientemente relutava. Minha entidade física era uma louca numa camisa de força. Alguém segurava meus braços e minhas pernas. Não ouvia o vento bater. Concentrei todas as minhas forças mentais no exercício do mover-me, tenho certeza que teria suado, se pudesse. Teria gritado se conseguisse. Minha garganta estava travada. A eternidade percorreu todo o tempo em que passei desprendendo-me do invisível. Arregalei os olhos, quando pude, e levantei-me num pulo, caindo no chão de atordoamento. Desde então, tive medo de voltar e dormir e acordar só com a metade de mim.

Os Elvis

O dia se desenrolava e o gato branco, recém chegado na nova casa, miava insistentemente para o relógio do rei que lhe dava o nome. Elvis, o relógio de parede, ficava no meu quarto, logo por cima da vastidão de minha cama. Tic-taqueava como presente de uma querida amiga. Achei engraçado o gato miando pro chará. Logo catei o bichinho pelo braço e o afastei do quarto para que não atrapalhasse minha leitura. Passados dois segundos, Elvis voltou a plenos pulmões. Subiu na cabeceira da cama, vidrado no relógio. Ri-me, perguntei-lhe o motivo daquilo, ele nem me olhou. Renovei a tentativa de removê-lo, que ele logo tratou de fazer falhar. Não parava de miar, alto, concentrado, como que preso por um fio invisível. Estranhei, finalmente. Larguei mão, acabei por me mudar de cômodo e deixei os Elvis na companhia um do outro. Fui dormir depois da meia noite.
Acordei, saí do quarto, encontrei minha mãe tomando café e lendo jornal. Ela logo me veio: filha, sabe o porquê de o Elvis estar miando pro teu relógio daquele jeito ontem? Porque, eu quis saber. Era aniversário de morte do rei. Meu gato nunca mais miou praquele relógio.

O que não cabe mais

Fazia alguns dias de noite que o Sol não ousava interromper para reluzir a neve. Nesses dias em que o mundo era inacessível, o lá fora respirava para dentro como um animal fadigado do tempo. O rapaz fragilmente magro que ali se habitava só movimentava seu corpo até onde seus próprios limites o encorajavam; o ar já não mais pertencia ao ambiente. Era sábado, possivelmente quarta-feira, não conseguia decidir-se. Seus poucos fios brancos - oriundos de trauma, não de velhice - pendiam por cima de seus olhos pesados. Há seis meses aquela casa lhe reservava seus cômodos confortavelmente fugidios. Num efeito reverso, pela primeira vez o conforto produzia um crescente incômodo quase com tom de conformismo. O limiar entre dormir e acordar estava fosco, ambos o sonho e a realidade eram como olhos fechados, como vozes emudecidas. Caminhava pelo chão frio sem perceber-lhe a frieza para comprovar a fuga covarde de todos os sentidos. Suas meias lhe saiam dos pés de propósito, movidas por uma entidade zombeteira. Os móveis o atravessavam com a mesma facilidade com a qual atravessariam o vazio. O rapaz já não tinha vontades. Sentia-se como um espectro invisível de algo que um dia existiu, mas que não mais relaciona manifestações vitais à própria vida. Quando tentava escrever, seus dedos cochichavam lentamente: não cabemos mais em suas mãos. Os horizontes das janelas eram as cortinas, e o além-mar os quadros envelhecidos na parede. Alguma coisa comprimia a existência contra sua própria pele. A fragilidade do rapaz estava prestes a romper com o que lhe impedia de ser lodo, romper com o que a separava dos bichos da terra. Os estalidos da escada estavam obrigando-o a transpor suas veias em carnes, suas carnes em ossos, seus ossos em pó. Seu corpo se arrastava para o fim do corredor. Precisava ir de encontro com o mundo bruto e não-lapidado que o excluía. Tropeçou. Escorregou em si mesmo. Rolou pela escada, que o engoliu e cuspiu seu esqueleto amarelado. A vergonha encardida do rapaz magro foi o que restou do confinamento de um homem.