quinta-feira, 7 de abril de 2011

O que não cabe mais

Fazia alguns dias de noite que o Sol não ousava interromper para reluzir a neve. Nesses dias em que o mundo era inacessível, o lá fora respirava para dentro como um animal fadigado do tempo. O rapaz fragilmente magro que ali se habitava só movimentava seu corpo até onde seus próprios limites o encorajavam; o ar já não mais pertencia ao ambiente. Era sábado, possivelmente quarta-feira, não conseguia decidir-se. Seus poucos fios brancos - oriundos de trauma, não de velhice - pendiam por cima de seus olhos pesados. Há seis meses aquela casa lhe reservava seus cômodos confortavelmente fugidios. Num efeito reverso, pela primeira vez o conforto produzia um crescente incômodo quase com tom de conformismo. O limiar entre dormir e acordar estava fosco, ambos o sonho e a realidade eram como olhos fechados, como vozes emudecidas. Caminhava pelo chão frio sem perceber-lhe a frieza para comprovar a fuga covarde de todos os sentidos. Suas meias lhe saiam dos pés de propósito, movidas por uma entidade zombeteira. Os móveis o atravessavam com a mesma facilidade com a qual atravessariam o vazio. O rapaz já não tinha vontades. Sentia-se como um espectro invisível de algo que um dia existiu, mas que não mais relaciona manifestações vitais à própria vida. Quando tentava escrever, seus dedos cochichavam lentamente: não cabemos mais em suas mãos. Os horizontes das janelas eram as cortinas, e o além-mar os quadros envelhecidos na parede. Alguma coisa comprimia a existência contra sua própria pele. A fragilidade do rapaz estava prestes a romper com o que lhe impedia de ser lodo, romper com o que a separava dos bichos da terra. Os estalidos da escada estavam obrigando-o a transpor suas veias em carnes, suas carnes em ossos, seus ossos em pó. Seu corpo se arrastava para o fim do corredor. Precisava ir de encontro com o mundo bruto e não-lapidado que o excluía. Tropeçou. Escorregou em si mesmo. Rolou pela escada, que o engoliu e cuspiu seu esqueleto amarelado. A vergonha encardida do rapaz magro foi o que restou do confinamento de um homem.

Um comentário:

Unknown disse...

gatinha, dá uma olhada nos tempos verbais, acho que você fez uma confusão neles, e em algumas vírgulas - porque eu me perdi lendo