quinta-feira, 31 de março de 2011

Auto-sabotagem

Era terça-feira, dia no qual o céu costumeiramente borra suas cores e o café ritualisticamente borra o destino. Ariel e eu, para nos bandearmos em revolta contra nossas aulas irritantes de direção, subíamos o morro perto do Instituto de Pequenas Causas e nos sentávamos no bistrô com a intenção de nossas pretensões. Fazíamos questão de manter silêncio hermético durante todo o processo, interrompido somente para fazer o pedido à mocinha que nos atendia. Nossa comunicação era exclusividade de olhares de tão telepáticos quase magnéticos. Um expresso duplo com chantilly – que era pra ajudar a borra – e Ariel queria ser a primeira.
Gostávamos de predizer catástrofes. Ao menos um dia da semana precisava destinar-se ao inconcebível mundo catastrófico das pessoas felizes. Ariel, com jeito de catarse trágica, anunciou-me: vejo fogo, vejo destruição, vejo... Ó, vejo tormento! Abandonou a xícara na mesa e debruçou-se em minha direção, queria observar-me mais de perto. Prostrava um sorrisinho nos finos lábios e uma sobrancelha suavemente erguida. Senti-me desafiado. Que era inabalável, respondi, lhe disse que não me importava. Que estava sempre bem com a vida, completei. Ela largou-se na cadeira bruscamente e riu uma risada rápida, com espasmos de gargalhada enlouquecida. Empurrou sua xícara para mim, eu a apanhei. Disse-lhe sua mãe vai morrer, e, além disso, seu pai vai embora. Disse-lhe ninguém te vê diferente, você é invisível. O mundo está ficando velho, calei-me.
Ariel engolia minhas palavras, levou alguns segundos para energizar-se delas. Disse-me que colocaria uma música para dançar, dançaria com amigos, que nada é importante. Que a dor serve para ignorar e sentir havia se transformado em alegria. E então chorou pesadamente, de olhos abertos, alagados e incrivelmente pacíficos.
Olhei impaciente ao redor. Não tinha ninguém existindo. Todos estavam absurdamente satisfeitos e qualquer deles poderia – e com certeza topariam com torpor - posar para capa de um livro de auto-ajuda. Auto-sabotagem, Ariel me corrigiu, e não estranhei que ela tivesse me lido os pensamentos. Poderíamos certamente estar cercados por bárbaros. Homenzarrões musculosos, cujas barbas não tinham nada a temer, e, dessa forma, anulavam a própria suposta coragem. Nunca vi gente corajosa que não tivesse medo de escuro, disse. Ariel me sorriu em resposta. Levantei-me primeiro, ela copiou-me os movimentos, fomos andando para longe de nossas experiências de mulheres-maravilha, jovenzinhos badalados e velhos dentuços demais. Era longe, afinal, o lugar ao qual pertencíamos.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Um dia

Vivia um velho barbudo no dorso do rio. Era apaixonado pela correnteza, e ela por ele de volta. Num dia de sol baixo e poeiras visíveis, o velho subiu numa pequena canoa de madeira e deixou-se guiar pelos olhos do movimento da água, que era também o seu. Conversava baixo com o som do fluir e chorava para dentro do rio. Chorava de sentir, e não apenas de nome. As árvores caminhavam ao lado deles, algumas acenavam de simpatia. O sol ia bocejando, com sono, procurando unir-se ao abrigo da terra. A água derramada aclamava as pedras que, lá embaixo, esperavam-na. O velho contentava-se em sorrir melancolicamente, como se carregasse consigo uma certeza.
Na cabeça da cachoeira, braços abertos, o vento acolheu a velhice do velho num balão colorido. A canoa caiu, quebrou e voltou para o fundo do rio. O velho voou para as nuvens, ainda dava tempo de beijar o sol de boa noite.

sábado, 26 de março de 2011

We are drifting away

Algumas coisas acontecem em dimensões muito profundas da existência para que sejam transformadas em histórias. E aqui registro essa máxima como um contrato assinado pela literatura para me permitir delírios. Meu estilo inconcreto está, então, permitido, sem medo e sem bloqueios. Não estou para desafios, estou para desencontros.

Invasão: quantidade excessiva de informações de ordem sensorial a serem processadas pelo cansaço de um cérebro tumultuado. A hostilidade do mundo pretendia provar-se, tanto psicológica quanto fisicamente. Cutucava-me com força, sem espaço, como que para obrigar uma muito necessitada paz.
Atingir um devir, um transitar por. Não estar nas coisas, mas entre elas. Acalmar o pensar no pensamento. Sentir que as palavras brotam pelo meio junto do vento e sua capacidade relativizadora do tempo.
As palavras são, agora, como a grama, o caminho. É a anti-arborização deleuziana que transmuta meus símbolos, converge literatura e filosofia. Trata-se da percepção da naturalidade do filtro do leitor que cata símbolos em pés de palavras. Há tanto nesse ex-tumulto quanto há nas pessoas.
Aprendi a não evoluir, mas involuir na veracidade da transcendência do amor e da simplicidade. Aprendi que o nome das coisas é vazio, e Manoel de Barros me ensinou a enchê-los de abandonos, cultivá-los em ruínas, cuidar da transparência dos olhinhos semicerrados de uma menina que vê e desvê como as texturas e nuances da natureza. Como as cores que se espalham sem vergonha nos vazios dos nomes das coisas. Acontece, a partir daí, uma humanização da língua através da rostidade construída de buracos negros, muros brancos e desconstruções. Sim, tudo me vem torto, desnudo, cru e repetitivo. Não tem régua e não tem história, porque a história só é composta por fatos que descredibilizam aqueles realizados por dentro da minha fechadura.


sexta-feira, 11 de março de 2011

Cafeína: amor e ódio; dos efeitos e outras considerações

Meu corpo está num estado mórbido de exaustão, tanto que alcançar o costumeiro caderno vermelho e iniciar este quase que me foi um sacrifício. Cada palavra me dói num lugar diferente. Porque não dormir? Pense que horas são. Estou doente, vê. Daquelas gripezinhas bobérrimas, mas avassaladoras, que te fazem sentir o incômodo de sua existência física num mundo nada palpável. Ok, fui acordada a esta hora da madrugada com uma xícara bem servida de café quente. Mãe alegando "você não pode tomar xarope - com gosto de vinho doce e barato - se não colocar algo no estômago". Aham, sei. Qual o quê. Venho fazendo isso com o antiinflamatório para garganta e até hoje não morri. Era um antialérgico, ainda por cima, eu poderia estar dormindo perfeitamente dopada. Mas não. Estou analisando causas, efeitos, gostos e a maldita da dialética da linguística. Pausa para uma tosse e para perceber que a tinta da caneta está quase no fim. Pré-preguiça de buscar uma nova... Tenho certeza que o conteúdo deste (primeira palavra riscada, sinal de motor pifando) poderia estar sendo discutido via messenger com meu amigo abstrato de João Pessoa. O que me lembra que andei sonhando a noite inteira com redes sociais e pessoas se agredindo com bastões coloridos. Isso me incomodou tanto que tive que me levantar para ir ao banheiro e fazer uma nova bolinha de papel para distrair meu gato, Elvis Presley. Não conheço pessoalmente esse querido amigo intangível (primeira palavra acrescentada a esmo no rodapé, sinal de perda total). Comunicamo-nos unicamente via mundo virtual irreal, porque longe é um lugar que verdadeiramente não existe. A linguística me diz que a fala é totalmente diferente da escrita. São as variações da natureza humana versus o modelo fixo da perfeição. Lá no meu subconsciente - não digo inconsciente, afinal estou justamente conscientemente tomando nota dele - isso me faz morrer de amores. Falar, pra mim, é um sacrilégio. Quase morro. As palavras saem tão tortas que quase incoerentes, portanto a linda da linguística me faz uma defesa genuína. Quando eu e meu amigo irrealmente real nos esbarrarmos, o universo implodirá em uma sopa de letrinhas, a minha eloquência cairá por terra e a verdade da minha "meiguice" idiotária virá à tona. E então eu perderei um amigo só porque meu café estava ácido demais. Venho bebendo tal maravilhoso veneno negro desde os quatro anos de vivência, daí as pessoas supõem que podem me entupir dele. "Desce aqui, vamos tomar um café". É quase um complô. E aqui, pra mim, é o basta desse monólogo diarístico avulso entre meus inúmeros fluxos de pensamento. Quando chega na teoria da conspiração é definitivamente hora de parar. Espirro. Viu, pra quê ter medo das palavras? (Vi, no fim, que esse texto não ficou do tamanho quanto me pareceu. São distorções imaginárias de madrugadas matutínicas, creio. Ótimo, passei quase uma hora num fluxo de consciência constante e agora estou com taquicardia, um texto chocho e moralmente desequilibrada).

Da série "Monólogos Diarísticos e Outras Aparições Raras".
Manifesto Anti-auto-bullying:
Não se suprima!

quinta-feira, 10 de março de 2011

Movimento

O ser humano protagonista abre os olhos. Vê um parque colorido num tom meio pastel, algumas pessoas suavemente turvas passando ao longe, mas sorrindo. Anda um andar calmo, quase flutuante. Chega a uma ponte, olha para baixo, há um riacho passando tranqüilo. O barulho da água corrente supera a música ou se mistura a ela com a mesma intensidade. O ser humano que observa presta atenção no movimento da água. Vê as sombras de alguns peixes nadando por debaixo dela. Pisca. O ser humano vê um menino sentado na terra, embaixo de uma árvore, comendo uma melancia. Tudo é rústico, lembra uma fazenda. A melancia pinga, o ser humano se aproxima, os olhos se aproximam das gotas que caem e melam a mão do menino que come. Acompanham o movimento de uma gota, que escorre pela melancia, se desprende dela e vai caindo até atingir a terra. Pisca. O ser humano está olhando para outro, uma moça, bem perto dele. A moça tem olhos tristes, olhos chorosos, uma lágrima desce por sua face esquerda e passa por cima de suas sardas. O dedo do ser humano protagonista se ergue, enxuga as lágrimas e depois se aproxima de seus próprios olhos. A água das lágrimas molha o dedo do ser humano protagonista. Transição. A imagem da moça é o segundo plano e o dedo molhado é o primeiro. Pisca. Os olhos se abrem para um mar infinito, intimidante, calmo e movimentado, sereno e poderoso, bonito. O mar é num tom de azul-escuro-meio-cinza, o barulho forte de água agora mistura-se novamente à música, emocionante e variável. Ao fundo o barulho das gaivotas e ao longe um bocado delas sobrevoando o mar. O ser humano protagonista-observador olha, então, para seus próprios sapatos na areia - cuja superfície voa suavemente para a direita pelo advento do suposto vento representado em detalhes -, marrons, com cadarços finos e simples. Um cadarço está desamarrado, ele amarra. Pisca. Os olhos abertos vêem um gato branco manchado de cinza sentado no chão, encarando o observador. O gato sai para a esquerda em direção ao pote também branco. O ser humano observador se aproxima do gato, vê sua pequena língua se movimentando em direção ao pote, bebendo a água dentro dele. Algumas gotas respingam para cima, o gato está de olhos fechados e com uma possível expressão de serenidade e satisfação. Pisca. Os olhos abertos logo se semicerram. Está chovendo. O ser humano não corre, caminha pouco rápido. Sente sua respiração e o barulho dos seus passos na calçada. É uma fuga urbana, mescla de calçada, rua e árvore. É à noite. A iluminação dos postes deixa as árvores verde-escuras com pontos de luz laranja. O ser humano, ainda caminhando pouco rápido, levanta um pouco a cabeça e observa a chuva caindo do céu. Olha para a luz do poste e vê os pingos laranjas passando rápidos e caindo nas folhas volumosas. As árvores têm aspecto de molhadas e vivas. Quase atingido por um pingo que vinha em sua direção, pisca. Vê uma pia branca de banheiro com uma torneira ligada forte, a água está escorrendo num fluxo grande. O ser humano observador apóia as mãos na pia. Seu olhar se aproxima da água corrente e faz, com ela, o percurso. Focaliza primeiro a boca da torneira e vai descendo, junto com a corrente, mais devagar. Atinge o ralo da pia, olha um pouco mais de cima. A água desce pelo ralo, em seu típico movimento circular. A música altamente intensa é abruptamente interrompida. Desmaio. Os olhos se arregalam, acordando num susto. O ser humano vê que se encontra num campo marrom-meio-cinza, numa terra com poucas plantas apenas em galho vivo. Os olhos fazem uma panorâmica e vêem o horizonte de um céu branco. Não há azul, os tons pastéis estão mais cavernosos e sombrios. Música agora pouquíssima e melancólica. Não há vida; só há, ao fundo, um som constante de descoberta e de solidão. Pisca. A pia branca, a torneira aberta e a água escorrendo num fluxo forte. As mãos do ser humano observador se movem em direção à torneira, sempre muito lentamente. Fecham a torneira com convicção, com força. O ser humano ergue a cabeça e se vê no espelho sobre a pia. A feição dele, de um homem mais velho, pouco importa. O importante é ressaltar bem seus olhos verdes-meio-mel, tristes e comedidos. Estão pesados, cansados, velhos, mas  certos. Brilham de marejados para, então, fecharem-se com força. Fim.

Kids on the Run

Certas coisas neste mundo estão intimamente interligadas. Agora, a distância física é uma bobeirinha à toa e as barreiras comunicativas ultrapassam a arte do diálogo. Estamos inseridos numa bolha, num ar que possui massa faiscante. Nós, criaturas dotadas de percepção, transmitimos sensações em diversos formatos para vidas que são sem que as reconheçamos. Não distinguimos identidade, mas sentimos a força do receptor. Quem não se esconde de sua capacidade sensitiva não foge do mundo. A troca entre almas observadoras das mesmas substâncias é bonita.

Estou feliz por conceber a sua presença, receber as cores que emanam de ti, de uma felicidade não sinônima de alegria, mas de uma melancolia que arranca reações extremas. É o seu efeito em mim, desconhecido das palavras certas e das melodias harmônicas, dos traços concretos ou conceitualmente tremidos. Estamos aqui, conectados. Parte de você sou eu, e eu sou o mundo, querido que sem motivo aparente me lança olhares furtivos no ônibus de meio dia, querida que passa por mim sem medo de me sorrir, gato que me encara do outro lado da rua. Há pureza na concepção de existir. E ambos sabemos disso na nossa consciência inconscientemente compartilhada.