sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Temos todo o tempo do mundo?

Era noite e o jantar estava na mesa. Alicia, sem motivos nobres, fez seu prato e sentou-se, servindo repolho com pimenta e suco refrescante de melão. Um silêncio constrangedor a cercava, interrompido apenas pelo tilintar dos talheres batendo nos pratos e os ruídos da saliva que encharcava o alimento. Sem saber por onde começar e sem o menor impulso por fazê-lo, Alicia acomodou-se à situação e tratou de comer depressa, como sempre faz. Repentinamente, sua mãe falou.

- Vocês não sabem o que aconteceu hoje.
- Hm?
- Eles me apoiaram na minha decisão, sabe. Por incrível que pareça.
- Isso significa que a gente vai embora, mamãe?
- É isso aí.
- Hm... Acho que na verdade eles não ligam muito.
- Ah, mas você sabe, era sempre aquele mesmo discurso negativo. Eles ficavam interferindo.
- É...
- Que bom querida, posso ir adiantando os papéis.
- Graças a Deus. Queriam que eu morresse aqui.
- Morresse?
- É, morresse.

Alicia já tinha terminado de comer há séculos, mas continuou ali, parada, absorta. "Morresse", ela disse. Imagens brotaram em sua imaginação de uma senhora muito velha deitada numa cama, despedindo-se; dela mesma atravessando uma rua e sendo, de súbito, atropelada; de seus amigos levando tiros certeiros. Sua família continuava matracando, mas ela não queria ouvir. Tudo aquilo não importava. Não importavam as reclamações, não importava a chuva ter molhado seu cabelo recém-lavado, não importava a perda da sua lapiseira nova, as brincadeiras infantis daqueles que lhe cercam, a perdição da humanidade, o fim próximo e certo do planeta. Naquele momento, nada disso importava. Havia outro fim próximo, mais próximo ainda do que a destruição do mundo.
A garota levantou-se, pôs o prato na pia. Foi caminhando por toda a casa, escancarando todas as janelas. Ligou um som muito alto com uma música inspiradora, começou a saltitar e tocar nos objetos pelos quais passava. Desceu as escadas e parou por um instante, pensativa. E então, sem mais hesitar, sem mais delongas, correu, correu como o vento, e saltou de um salto fenomenalmente empolgante. Dentro de segundos estava imersa dentro d'água e de suas próprias conclusões. A decisão foi mais simples do que muitos imaginam ser. Simplesmente mergulhar, mergulhar com força naquilo que, sem cerimônia, será tomado de você a qualquer instante.

Um comentário:

B. disse...

É bom quando as coisas simplesmente fazem sentido, né? Ou então quando elas não precisam de sentido.