sexta-feira, 17 de junho de 2011

A Maresia de um Lago


É difícil viver uma experiência que não te ajuda a ser você. Ter uma percepção abstrata de uma realidade distante não é o mesmo que existir ali, em contato bruto com a matéria da vida. Estou sentada por debaixo do conforto dos meus cobertores, escrevendo nas páginas de meu velho caderno vermelho. Enroscado nos mistérios de El Salvador, caminha um ocelot, gato selvagem das florestas e savanas. Dormindo no sofá azul de meu apartamento, está Elvis Presley, meu gato doméstico. Não sinto por perto o denso aroma da cultura Maia. Estou em frente ao meu computador, usando pijamas. As águas azuis e as luxuriantes florestas estão apenas nas fotografias do meu imaginário. A sensação de crescer num país onde os negros africanos passaram de minoria discriminada para maioria dominante me é desconhecida. De Isabel, conheço a princesa que nos libertou da escravidão. Isabel II é a rainha da Jamaica, que para mim só se tornou Monarquia na sexta-feira passada. Meu mar é o Lago Paranoá. Vejo gente rezando de inércia, programada pela catequese. Os jamaicanos rezam com música e com o cabelo bagunçado. A Costa Rica está em erupção de vulcões que queimam pontinhas do meu cérebro. Segurança pública não lhes falta, embora tenham abolido seus exércitos. Nunca vi um vulcão e não temo sua instabilidade, mas tenho medo constante de carregar meu ipod na bolsa.
Ainda assim, meu estômago entra em revolução quando leio sobre ditaduras e guerras civis. Os direitos humanos estão por dentro, como bichinhos que moram na barriga. A morte desses bichinhos não atinge apenas aos refugiados. Percebo-me como parte de alguma coisa metafísica, uma condição de existência que rompe o plano do tato. Carrego comigo a mesma mistura de gentes, o mesmo hábito de tomar café e a mesma imponderabilidade de florestas tropicais. Partilho da construção histórica de colônia, do título de exportadora de açúcar, dos problemas de violência endêmica e dívida externa. A distância, às vezes, é relativa. Conhecimento nem sempre se relaciona a conhecer, mas a uma sensibilidade extracurricular. A realidade, no fim, é a de um mesmo mundo que capta, constrói e cultiva orquídeas no quintal de casa.

2 comentários:

Juliana Amado disse...

Sou uma covarde. Muitas vezes não consigo ler sobre guerras civis, sobre injustiças, tragédias. Menos ainda penso nas pessoas. Porque dói. E eu fujo da dor. É covardia, eu assumo. Mas como evitar?

O que mais me chamou a atenção no texto foi o título. Bem pensado.

Anônimo disse...

Um belo retrato dos diversos planos em que a vida ocorre, dos conflitos antitéticos decorrentes da importância que atribuímos às coisas e da forma como o ser humano contemporâneo vivencia tudo isso. :)