domingo, 28 de agosto de 2011

Chega de conclusões

O problema de escrever conclusões - já no âmbito da metalinguagem - é perder as perdições.
Lembro-me vagamente de estar presa entre paredes rachadas e oscilantes, sem passagem para a luz e o vento. (O vento dá vida às coisas que dançam na força de seu impulso. Ensina-me a fragilidade de minha pele quando o frio se faz sentir. Mostra que nada é estático, nem mesmo o aparente inanimado. O vento é amigo da importância).
Eu estava hermeticamente isolada do espaço e do tempo, as horas já não eram do mundo. Acordava no susto da destruição diária: as paredes iam cair e esmagar minha existência. Meu corpo inteiro era de pálpebra. Minhas costas estavam prensadas contra a cama, que flutuava no espaço, girando.
Meus dedos precisaram ir aos olhos para que as lágrimas percebessem que estavam lá. O vinho é como o medo; eu bebo para senti-lo em mim. Entorpeço-me para sentir o canto da sala como meu espaço de direito. As palavras repetidas formam uma neblina de sentido. Sinto formigas nas costas; elas descem por minha garganta e emudeço na certeza da falta de compreensão. A angústia da defesa à fragilidade é algo que carrego como sujeira em unha de pé.
Quando as paredes quebraram, corri sem poder impedir minhas pernas. Transpus grandes animais mortos, mal cheirosos, que me lançavam na cara o tamanho da mágoa. Meus dedos queimaram no fogo da pólvora, mas eu não conseguia parar de ouvi-los. Queimei no que já era um incêndio. As árvores pareciam-me como um olhar para cima: via o céu. Mas eram a sombra (sobra) no chão. Eram apenas a luz do céu.
Aquela menina que caminhava para longe era de tal serenidade que quase me fez acreditar na possibilidade da sensação. A sensação é puro juízo de gosto. É demasiado meu, quando na prática. Sentir é menos que eu.
As paredes, hoje, impedem que as correntezas se encontrem em união - impedem o manter-se unido. Mas são, ao mesmo tempo, aquilo que segura o exército de águas subterrâneas e o faz perceber que está numa guerra. Todo exército forte precisa de paredes, mas toda parede precisa de portas para que a água possa correr.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Achei que rapaz fosse mais valente, mas o meu se encolhe no canto da sala.
A mãe deixou o bolo inteiro para a filha; bolo engorda.
Debaixo da escada foi o abrigo da filha no grito da mãe: hora de desembaraçar suas tranças.
A mãe olhou a foto na parede: os cabelos eram da filha, mas os óculos eram seus.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A cidade construída em uma depressão


           Estava sentado na praça daquela cidadezinha, num banco meio apodrecido, esperando o dia passar por mim. Meus olhos entorpecidos de algo como sono pós-almoço e noites acumuladas ouviram pássaros gralhando, preferi fechá-los para o silêncio. Há doze horas que você foi embora, e as velhas vísceras que te entreguei em mãos foram contigo. Não sei como viver sem as vísceras que, certa vez, foram minhas. Saí de casa cambaleante de moleza, sem algo que me sustentasse o corpo, e caminhei em qualquer direção que não me deixasse dormir para sempre. Sentei-me no primeiro banco que veio a meu encontro.
A luz do sol esquentava minhas pernas descobertas e gritava: tem sangue dentro de você; mas a vitalidade que me preenchia por dentro já não era vantagem, era um incômodo. Você foi embora há doze horas. Quando desenvolvi uma nova tentativa de enxergar um mundo pálido, uma mulher em tom pastel, quase que revestida de papel pardo, encontrava-se parada exatamente do outro lado da rua, me encarando de perto, como se pudesse entender a cor de meus olhos. Sua expressão seria de serenidade se não fosse, antes, de apatia. Ficamos atados num laço invisível, compartilhando consciências emocionais. Era um recado, que ela queria me passar? Tinha cheiro de recado. Daqueles importantes que vêm poucas vezes na vida. Um recado, naquele momento e lugar em minha vida, era um sopro forte no rosto, como de uma criança apagando vela no aniversário dos amiguinhos.
Quando ela sumiu, notei-me como um ponto de respiração na terra. Todo ponto de respiração carrega suas dores, e então deixei de perceber – não pude me lembrar se algum dia percebi - como o sol me atingia, porque os pássaros gralhavam, de onde vinha aquela brisa rala que só eu conseguia notar em meio ao mormaço do estar isolado numa bolha. 

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Respirei meu corpo para fora. Andei por dentro da chuva. Deixei-me acarinhar pelo calor do sol na minha bochecha. Vi a fumaça subir para o céu. A ópera do movimento.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

A eterna responsabilidade de respirar

O mundo deve ser o espaço de criação, e não o bloqueio criativo.

Senti vontade de começar este - por não saber muito bem como fazê-lo - anunciando meu primário contato com a importância. É uma pena que precisemos de conceitos para narrar o mundo, já que, apesar de úteis, eles são pouco... "Importância" não é a complitude do que quero dizer. No decorrer do vento, evoluí percepções do amor. Quinze anos foi a ruptura para o esclarecimento na sensação da presença do mundo; entendi que eu era parte das coisas pequenas do dia.

Anteontem uma mão quente e materna concentrou o cosmo em minha cabeça. A quentura de seu toque afastou o choro do nervosismo regado de hormônios e álcool e a tristeza regada de passado. Quando pude respirar, o descostume com o oxigênio me estonteou.
A segunda leva de mãos acompanhada de um céu iluminado pela falta de lanternas sufocou-me os sentidos. Respirar é a metáfora da troca. O mundo deve passar por todos os milímetros do meu corpo para que eu o devolva diferente. Este é o resumo da vitalidade. A súbita compreensão da relação físico-abstrato é pesada, inchei de pressão. Vi todas as imagens do Universo e descrevi o amor com naturalidade. Abri os olhos para o fogo, beijei as mãos e meus amigos e tive certeza da razão de existir.

Recebi um conselho das palavras: volte ao seu estado normal de calma. Só é possível respirar fundo em consciência de paz. Quando o mundo é organismo vivo notável, a calma é perceptível.
Existem muitas coisas que seus dedos podem tocar. Acorde, pule e não pare. Não é preciso esforço para ver o que acontece a todo momento - não é preciso esforço para ver tudo. 
Meu cedilha é uma cobra, meu gato é um leão e eu tenho 30 metros de altura. Engulo aviões para dar espaço aos pássaros, suas vidas são atribuladas na arte de bater asas e voar.
Há mais em meus olhos do que o crédito que lhes dou. Vi dois sabiás enamorados em azul anil, pulando entre galhos que mudavam no tempo. Sorrio quando sei que a fugacidade daquele azul significa o não-perder um pedaço do mundo. Não preciso ir longe para ver tudo ao contrário. Caminhamos em sincronia não é sem querer. O som que a folha faz para me lembrar que ela existe e que pisei em sua existência não é menos que uma reclamação. Diminua o número dos seus anos ou prolongue-os para ganhar atenção, porque nem sempre é preciso saber.

As palavras devem estar próximas.

Estou pulando na sonoridade do vento que bate no rosto do menino perfumado pelas flores amarelo-existência. É só assim que posso respirar. Sou eternamente responsável por minha respiração.

terça-feira, 21 de junho de 2011

A terrible sunday

- Você vai se levantar e vir conversar comigo ou prefere continuar escondido por trás desse seu livro estúpido de piadas?

Não é um livro de piadas, pensei. É um Woody Allen. E não é só porque leio uma crônica por noite que estou me escondendo. Muito menos fugindo, fugindo jamais. Eu sei da vergonha que sinto ao iniciar sentenças pelo pronome que me é de direito. Vejo todos os dias a idiotice da situação. Sei que finjo acreditar na complacência com a solitude, e que na verdade sua gêmea má, a solidão, acaba por me confundir. Sou tão frágil! Não quero sair falando sobre as minhas faltas. Preciso acreditar no lado bom da moeda. Chorar a invisibilidade é para fracos. Sou invisível, pronto! Só aceitar. É bom que ninguém perceba o borrão no espelho, bom que ninguém o segure entre as mãos. Excelente que ninguém se disponha a entrar pelo buraco da fechadura. É entendível, todo mundo tem medo de lugares estreitos. Entendo bem meu lugar no gosto, mas também no dispenso. Sei que a segurança da existência está nos limites de meu próprio corpo e não fora dele. O cuidado comigo é meu, porque só eu conheço a insensatez de minha fragilidade. Quem notaria um contorno de tons azuis flutuando num espaço caótico e cheio de distrações? Quem captaria fragmentos de cor e pó que o vento pode, a qualquer momento, soprar? Quem se sujaria de partículas, tatearia o que não se vê, amaria um amontoado de humanidade? Meu livro partilha comigo palavras de um ser humano incrivelmente distante. Isto deve bastar. Aos que me reconhecem a sombra... Não entrem na caverna, não vale a pena. A logos vital permanecerá no pote de vidro, lendo livros. Não, eu não quero conversar e abrir mão do meu espaço de único leitor.

- Vai continuar me ignorando?

Sim, incômodo. Você é só uma sujeira de umbigo recorrente no homem moderno. Frustrações estão em alta. Eu não estou fugindo, estou apenas guardando a dor para mais tarde.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

A Maresia de um Lago


É difícil viver uma experiência que não te ajuda a ser você. Ter uma percepção abstrata de uma realidade distante não é o mesmo que existir ali, em contato bruto com a matéria da vida. Estou sentada por debaixo do conforto dos meus cobertores, escrevendo nas páginas de meu velho caderno vermelho. Enroscado nos mistérios de El Salvador, caminha um ocelot, gato selvagem das florestas e savanas. Dormindo no sofá azul de meu apartamento, está Elvis Presley, meu gato doméstico. Não sinto por perto o denso aroma da cultura Maia. Estou em frente ao meu computador, usando pijamas. As águas azuis e as luxuriantes florestas estão apenas nas fotografias do meu imaginário. A sensação de crescer num país onde os negros africanos passaram de minoria discriminada para maioria dominante me é desconhecida. De Isabel, conheço a princesa que nos libertou da escravidão. Isabel II é a rainha da Jamaica, que para mim só se tornou Monarquia na sexta-feira passada. Meu mar é o Lago Paranoá. Vejo gente rezando de inércia, programada pela catequese. Os jamaicanos rezam com música e com o cabelo bagunçado. A Costa Rica está em erupção de vulcões que queimam pontinhas do meu cérebro. Segurança pública não lhes falta, embora tenham abolido seus exércitos. Nunca vi um vulcão e não temo sua instabilidade, mas tenho medo constante de carregar meu ipod na bolsa.
Ainda assim, meu estômago entra em revolução quando leio sobre ditaduras e guerras civis. Os direitos humanos estão por dentro, como bichinhos que moram na barriga. A morte desses bichinhos não atinge apenas aos refugiados. Percebo-me como parte de alguma coisa metafísica, uma condição de existência que rompe o plano do tato. Carrego comigo a mesma mistura de gentes, o mesmo hábito de tomar café e a mesma imponderabilidade de florestas tropicais. Partilho da construção histórica de colônia, do título de exportadora de açúcar, dos problemas de violência endêmica e dívida externa. A distância, às vezes, é relativa. Conhecimento nem sempre se relaciona a conhecer, mas a uma sensibilidade extracurricular. A realidade, no fim, é a de um mesmo mundo que capta, constrói e cultiva orquídeas no quintal de casa.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Weight of the World

Havia algum tempo, eu caminhava por entre as sombras de árvores imponentes. Utilizava-me de meus outros sentidos na busca por abrigo. Os sons suaves dos bichos da floresta me mantinham acordada, impedindo-me de desmaiar. O cheiro das frutas silvestres alimentava-me as lembranças. A chuva me fazia ainda sentir. O gosto da terra me localizava no mundo. A impossibilidade de desistir - desexistir - me separava da fraqueza desenvolvida por minhas pernas.

Vi, então, um ponto brilhante no longe.

Fui correndo de ofuscada, não pude conter meu corpo desesperado. Tropecei no chão antes que pudesse me dar conta do vazio e caí vertiginosamente de um penhasco imponderável.
As moléculas do meu organismo entraram num processo de dissociação, perdendo-se umas das outras como a umidade se perde em orvalho. Desfiz-me no ar em poeira elementar, virei a parte solitária de um todo que eu não merecia. Eu não era - eu era nada.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

A êxtase do gerúndio

Ser é diferente de estar sendo.

Time and Space

O cobrador do ônibus era um homem mais velho, calculei seus cinquenta e cinco anos. Carregava consigo olhos tediosos e pacíficos que procuravam se distrair pelo mundo. Olhou para mim algumas vezes, enquanto eu me anestesiava com os pássaros que dançavam Johnny Flynn nos meus ouvidos. O Sol estava por cima deles, lhes fornecendo energia de noites bem dormidas. Eu estava tonta de respirar e contrair meu corpo. A tontura me relaxou num sono delicado. O cobrador do ônibus me viu.

(As coisas estão sincronizadas. Não estou sentada na posição correta e um tufo do pêlo branco de Elvis Presley voou por cima das minhas retinas).

Corri para alcançar o tempo e resolvi que o dia não pode envergonhar-se de ser, porque o passado é a memória do presente e o futuro é só um holograma. Você alega: meu umbigo tem licença para borbulhar! O motorista passou por você e não parou, eu sei... Somos pequenos demais, mas entenda. Eu não seria caso não fosse eu. Você sentiu vergonha, vi sua cabeça abaixando, vi seus olhos inquietos na possibilidade dos observadores. Lembrei-me que minha mãe volta tarde, e que a solidão não é pontiaguda, não é cortante, ela arranha só pra acordar. Não precisa fingir que você sentiu raiva, porque "o sentimento é a excelência de si". Um motorista perfurador de almas é também motivador de crises existenciais e comprova a teoria da pluralidade do mundo. Todo mundo é igual no constrangimento de existir.

É bonito perceber que eu durmo na posição de descansar e descanso na posição de ter preguiça. Ajuda a entender que sou torta, e que ser assim às vezes dói - sempre vai doer. Doeu quando apertei minha coluna contra a dura realidade, mas "cada um é um si". O silêncio pode ser compartilhado com o próprio silêncio. Trocar com alguéns é um incômodo quando nunca controlamos vontades. É difícil ser um estorvo na arte de compartilhar. Abrace a fragilidade, oras. Todo mundo é igual no medo que tem de todo mundo.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

There's so much beauty in the world

"Wake up, sleepy-head, we're having a picnic. I'm already dressed up, I have a basket and a towel. Get ready, I'm coming over!"

This is not about time. And it's not about me. It's about you. You're taking the world out of its senses. I'm falling through a small earthly whole.
People don't like to hear things like this. They are afraid of everything that's beautiful. They reject everything that's fragile. The possibility of fragility scares them.
But two things: You're not like other people. And I'm protected by transitoriness.

These words are directed to nobody (but you).

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Sou um menino

Sou um menino. Talvez grande, talvez pequeno; a presença dos meus anos não me muda a situação: estou para aprender a ser mau, na condição de criança preenchível, ou estou desaprendido de sê-lo, na condição de homem magoado. O que faz diferença, a saber, é que sou lúcido.
Mantenho o costume de caminhar desacompanhado de gentes. Gentes convencionam-se a não gostar do silêncio e do vento, e o vento com seu silêncio pós-explosivo é o único que me abre as penas. Ando pelo céu porque o mundo existe na relação do bicho humano com o mundo. O céu não pode ser conceituado e nem legislado por cores. Não compactuo com metáforas: a terra é simples.
Quando voo desatento, porém, algumas pedras dão por me atingir. Gosto de acreditar que tudo não passa de um terrível engano. Os bichinhos urbanus devem ser alérgicos a pedras. Os filhotes, principalmente. Devem acreditar que o azul do céu é como uma grande boca, que vai engoli-las para longe. Afinal, criaturas que existem sabem como é existir. Certo? Mas às vezes as pedras machucam. 
Num dia iluminado demais para que eu enxergasse com clareza sem óculos escuros, voava sorrateiro, meditando para o Sul. Sem aviso, uma pedra ríspida bateu em uma de minhas asas. Doeu como um coração que incha e, de tanto inchar, fica grande demais para quem o povoa. Nem mesmo sei se aquelas patinhas frágeis e magrelas poderiam tê-la lançado com tamanha veemência. Tonto, caí até o chão, procurando por resquícios de autocontrole. Restabeleci-me na grama, sentindo-me pesado e ridículo. Os riscos da vida são bonitos, mas podem nos levar a infortúnios de tal sorte. Minha escolha, porém, é entender que tudo é construção e possibilidade. Eu sei da alergia dos pobres bichinhos. Eles não têm culpa.

I won't make it to last friday.
I won't find my magic poem again. I won't climb up the tower again. I won't confirm my believes again.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A verdade do colapso

Se antes os indivíduos estavam descobrindo que existiam no mundo, agora existem ao extremo, como células explosivas em expansão. Se antes descobriram que tinham escolhas, agora sentem a pressão de escolhas infinitas. Se antes perceberam que eram entidades pensantes, agora mentalizam o mundo num cérebro. Se antes perceberam uma bolha envolvendo o umbigo e zelaram por suas cores, agora se desesperam quando a bolha estoura e pateticamente fingem que ela ainda está ali. Se antes gritaram numa só voz e deixaram um eco ressoando para trás, agora gritam surdos e individualmente, cada um para um lado, e no ar ecoa um burburinho insistente.

(Algumas pessoas ignoram suas explosões, tentam controlá-la ou diminuí-la. Essas pessoas são as mesmas que confundem alegria com felicidade. Não existem manifestações exteriores. Só um indivíduo pode perder-se de sua própria apatia, implantar um coração num robô, aceitar a efemeridade sem espetar-se nela. A constância só existe naqueles que permitem que sua identidade grite, entre em conflito, perceba-se, exista, mova-se. Porque o silêncio vem depois da explosão. E vem a calma para enxergar, pegar no colo, fazer dormir - e não fazer desmaiar.)

segunda-feira, 16 de maio de 2011

A efetividade do colapso

Não sei até que ponto confio na esfera de possibilidades do Universo. Confio, agora, apenas nos meus lençóis, bonitos e arrumados sobre a cama. Meus lençóis estão indubitavelmente esperando por mim.
O que quer que seja que conecte dois seres neste mundo, é de uma instabilidade irrevogável que não há como medir. Estou imóvel contra a parede, percebendo minha projeção do futuro a carregar consigo só minhas responsabilidades sobre minha própria existência. A indissolução acompanhada da imprevisibilidade são características da pluralidade. A pluralidade diz respeito ao conjunto de indivíduos que interage entre si. Cada um desses indivíduos é considerado um ser humano por ser totalmente capaz de agir.
As outras pessoas são poços de ações, e eu não quero mais agir perto delas. A ação diz respeito a algo novo e completamente independente. Ações colocam monstros no mundo, monstros livres e errantes.
Meus lençóis estão arrumados sobre a cama. A vontade de desarrumá-los é grande. Agindo, muito provavelmente eles deixarão de estar arrumados sobre a cama. Não acho que consiga lidar com essa possibilidade. Só sou humana, agora, se não agir for, também, agir.
Não quero tocar as coisas. Nem mesmo o chão que sustenta meu corpo. Quero ser um corpo flutuante e sozinho no espaço e no tempo.

Não é justo que um século me condicione. Tamanha intensidade provocará a explosão de minhas veias. Sento-me ao chão para me contorcer com ele, arrepiar-me de desespero, sentir meus dentes se desprendendo da gengiva, para ver-me como qualquer outra coisa que não eu. Nada pode ser tão efêmero. Nada pode ser tão durável. Tchau.

I'm waiting for the day when you can love again

Antes era sempre a cabeça que se cansava das outras partes do corpo. Como todos sabemos - um peixinho me contou - a cabeça e o corpo são duas coisas completamente diferentes, dois organismos distintos que apenas se conectam por um gancho ou qualquer outro objeto apropriado para ligar instâncias. Isso depende, claro, da cabeça e do corpo dos quais tratamos. No caso dos meus, o que os prende é um fio de nylon. (Não há nada de realmente poético num fio de nylon). Minha cabeça nunca suportou bem as decisões absurdas do resto do meu corpo. As discussões eram de uma impraticidade irritante. Alguma coisa aconteceu, no entanto, que mudou o fluxo natural das coisas.
Meu corpo está absolutamente farto da minha cabeça. Está considerando com certa seriedade a possibilidade da separação definitiva. A cabeça está sufocante, pesada, tratando de toda a identidade dentro de si, e impedindo que dois sejam dois. Não existe diálogo. O corpo tenta mostrar-se insatisfeito, mas a cabeça torna mental qualquer tipo de manifesto sensitivo proposto pelo corpo. O corpo adoraria gritar. A cabeça mentaliza toda a situação dos dois, lidando com ela de forma ultra-racional, quase doentia. Um colapso está para acontecer.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

L

Parei de sentir meus dedos no momento em que pisei fora de casa. A câmera nova que instalaram no elevador me intimidou. Caminhei cortando o frio e o escuro com a esperança de não sentir-me tão sozinha ao sentar-me comigo mesma num dos cafés mais movimentados que conheço. Ou de encontrar alguém. Um rosto cuja rostidade me era melancolicamente familiar. Devia ter-me deixado tomar pela euforia que senti ao te ver pela única vez ali, me perfurando a alma como se a tivesse visto crescer. E eu me comportando como se não fosse assim. Sentei e pedi um capuccino, o barista - que um dia havia me dado um chocolate quente com caramelo para que o café não me tirasse o sono - não se lembrou de mim. O líquido trocou calor com meus órgãos e então pude me lembrar da vergonha que senti quando te reconheci por completo. Não obtive certeza mental de sua identidade, mas uma certeza sensível. A experiência de contar pássaros e observar besouros há onze anos foi que me voltou. Arrepiei-me sem o frio que hoje fazia. Não sei se senti vergonha da situação, vergonha da passagem do tempo por dentro de nós, ou se senti medo do teu poder infindável de dilacerar meu espírito. Esse poder ainda me atingia da mesma forma que fez sorrir os oito anos dos meus olhos. Tive medo do caos do universo, que nos convergiu aqui naquela quinta-feira, há exatamente duas semanas. Tentei mudar de página, reiniciar um texto, escrever minha crônica de turista, mas não pude. Minhas palavras só queriam sair para a lembrança tua. Nunca mais ouvi de ti e muitas vezes tentei te achar pelas ruas. Você foi uma aparição, percebe? O frio está desolador, pedirei a conta e vou-me embora. Não sei se volto aqui. Talvez volte todas as quintas-feira que se seguirão a esta. Nem mesmo sei se você se lembra de mim. Mas teu espectro, saiba você, me despertou para a existência de alguma coisa essencial. Lembrei-me da força pura e inerente que pode conectar dois seres humanos acima deste mundo. Por isso, obrigada.

F.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Não sei ser turista

Tem alguma coisa respirando através das páginas molhadas de meu caderno. Respirando através de mim, como que aumentando os limites de minha pele. E é apenas por esta razão que motivo-me a, também, respirar.

A menina sempre verde e sempre encantada foi para o meio do mato e sorriu para as pessoas invisíveis por medo de se perder. As folhas e as pessoas passavam por dentro dela com a mesma rispidez e rapidez; adjetivos que ela internalizava e, por imitação, botava em prática como se fossem verbos. Pressionava as coisas para fora e para ver se entravam coisas novas. Se a alma das pedras e das flores despertavam sua calma, se suas ações humanas desprendiam olhares sorridentes, se o barulho dos bichos do mato sacudiam a água para fora do texto e o texto para fora da água.  Alegava que era pra ter tempo de chorar pela existência. Para ter certeza que seu corpo é de terra e que a terra é feita duma correnteza de palavras, tinta, atmosfera e pedaços de sensações.

Querida, me abrace com seus braços inefavelmente transcendentais. Não tenho vergonha de ti.

Título pós-textual: consolando-me nas possibilidades de devir

Jeff Buckley me arrancou lágrimas desvairadas enquanto eu lia forçosamente um texto sobre literatura barroca. Estava tentando - e continuo nesta ilusão - ignorar umas bolhas por dentro da minha pele que ardem e cutucam-me os nervos. Só sei falar de devaneios mentais, análises camonianas, filosofia metafísica, existencialismo renascentista e fazer alguns barulhinhos fonéticos intercalando toda a falação.
Compartilho da teoria de que nossa geração é inteiramente constituída por pequenas personas explosivas. Não somos acomodados - como todos adoram acusar-se-, apenas participamos de uma revolução silenciosa, já que, socialmente, estamos vivendo um tempo de tudos. Falei tanto e continuei falando (mesmo que por dentro de mim) que tive dor de cabeça antes mesmo de ouvir o barulho da construção que se segue numa parte do meu prédio. Os processos mentais estão me estonteando e, pouco a pouco, me direcionando para o contrário de explodir. Essa explosão das pequenas personas tem sido, para a pequena persona de meu cérebro inacabado, tão imprescindível que não encontra buraco por qual sair e acaba provocando uma espécie de implosão forjada. Poderia presumir que as bolhas incômodas vêm daí. Presumiria qualquer coisa se essa quantidade exacerbada de inferências não estivesse podando-me a existência. Continuo tendo certeza - com influências descarteanas - da importância de existir. Para pensar devo, antes, existir.
O próprio Renato Russo, com toda sua perdição em si mesmo, não conseguiu entender como todos podiam continuar dormindo diante da única coisa que era no mundo: o amor. É ele a única coisa que alimenta a quintessência humana. Tenho lutado contra o vento e contra a falta de canetas para mantê-lo vivo nas minhas percepções espirituais. Por todas as coisas que respiram e em seu estado sublime de altruísmo, estou falhando. Atualmente - além do Elvis e da grama - amo apenas a meu próprio pensamento. Sinto ciúmes do que não consigo amar totalmente por duvidar do caráter do próprio amor. Não confio que as coisas sejam imutáveis, porque tudo flui. O amor não é alguém que nunca vai me abandonar, mas a sombra dele sempre beliscará meus olhos para lembrar-me de que fui idiota ao deixá-lo perder-se de mim. Não confio na sua permanência, ele foi e não volta. Só reside no meu próprio ego mental, nas reflexões caóticas e perigosas do meu, então, falso coração. Vejo o absurdo desse egoísmo ridículo. Queria apegar-me a mim, apeguei-me tanto que meu suado self respect voltou-se contra a bruxa estima e enfeitiçou-a para que ficasse do tamanho que lhe convém a alma.
Expus o cenário do meu paradoxo. Não posso ser, porque só amo a meus pensamentos, que não são vivos para respirar. Como amar algo que, pela minha falta de existência, não existe também? Amo nada, portanto. Iludo-me na condição de ser amante do mundo. Jeff Buckley estava certo esse tempo todo, assim como minhas fiéis bolhas alérgicas.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Uma crônica de viagem

Todos os bons professores que já cruzaram por minha história me disseram que datas são apenas números. O que importa, na verdade, é compreender o pensamento por trás das ações, o jeito peculiar a cada civilização de ver e lidar com o mundo. Ótimo, internalizei a informação como dogma. Acontece que não consigo me esquecer dessa data específica. Era sete de janeiro de dois mil e oito.
            Acordou primeiro um espírito que seguia em uníssono comigo desde que éramos girinos não-alfabetizados. Seus olhos azuis e míopes despertaram incomuns. Tomamos café rapidamente e conversando demais, catamos nossas muitas coisas e saímos. A trilha sonora do céu foi da Lucy com seus diamantes, nós estávamos ocupadas conversando com as nuvens. Logo nos encontrávamos num lugar diferente. Para esperar, comemos toblerone enquanto observávamos a loirice de um menino pequeno que passeava sozinho com seu snorkel pelo aeroporto de Belo Horizonte. Ele nos notou e veio puxar papo, nos contar sobre os acampamentos com seus pais, cada qual com dreads mais bonitos e embaraçados, e nos dizer o que pensava sobre o desmatamento do mundo. Separamos-nos de Luan e descemos no mal-cheiroso Porto Seguro. Na balsa que nos levaria para longe do cheiro ruim e das pessoas barulhentas, tentamos fotografar uma sósia da Fernanda Lima. A água balançava nossos corpos, nos arrancava umas risadas bobas. Chegando à ilha, descemos uma calçada de pedra estreita e envolta por casinhas, chalés, restaurantes e hotéis. Nosso primeiro quarto era no segundo andar, tinha uma varanda virada para um café que carregava eventuais músicos nos bolsos. Lady era o nome da baiana que gerenciava a pousada. Ela utilizava vassouras como instrumento de trabalho e gostava de salvar meninas de lagartixas abusadas. Contava repetidas vezes sobre como havia testado seu pai alcoólatra com um litro de cachaça. Adorava programas de TV que narravam desventuradas picadas de cobra em pobres melões alheios. Enquanto brincávamos de água e ironizávamos o gosto das pessoas locais pela dança do aero-bahia, François Civil cozinhava miojos artesanais para nós. Jogávamos cartas até o cair da noite, que iluminava a rua com cores diversas e espalhadas. Subíamos as pedras para jantar e tomar sorvete na sorveteria do incansável coelho bisonho, que nunca parava de pedalar sua bicicleta automática. Num dia, quando era hora de dormir, sentamos junto ao mar e contamos 516 estrelas. “Nenhum dia é comum”, Jostein Gaarder me sussurrava ao pé do ouvido. Nosso segundo apartamento tinha um jardim que dava para o já fundido azul do véu que nos encobria maternalmente. Um pedaço de bolo pela manhã, protetor solar fator 50 nas peles branquelas, caminhada ao longo do mar até a solidão das falésias. Eu segurava a mão dela, que não enxergava as ondas e suas fábulas: Oe, Oe, cantavam para nós. A vontade era de nadar até onde o mar fica azul. “Um dia tudo aquilo lá vai ser nosso”. Fiz aniversário, deixamos nossos cabelos ao natural, me tornei o maníaco da colher de pau num fim de tarde tedioso. Compartilhamos sapatilhas iguais, coloridas e com bolinhas-doença. Botamos os pés para fora dos limites do chão para que desempenhassem seu número para o mar, que os lambeu delicadamente. Dançaram The Clap Clap Song sem mistério. Fomos embora, a família me agradeceu por ser eu. Nunca mais senti vontade de ser outra pessoa.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Fim de tarde, eu dormia. Sonhava, naturalmente. Estava seguro com meus costumeiros espectros animais. Parei de sonhar, conscientizei-me de que dormia. Acordei, ao que parecia. Tentei abrir meus olhos e eles não me responderam. Por frestas embaçadas, vi que me encontrava em minha cama, deitado. Tentei virar para os lados, não pude me mover. Meus olhos não abriam. O ar pesava sobre meu corpo, comprimindo-o, impedindo-o. Estava paralisado. Meu cérebro não entendeu, tentava persuadir meu organismo, que conscientemente relutava. Minha entidade física era uma louca numa camisa de força. Alguém segurava meus braços e minhas pernas. Não ouvia o vento bater. Concentrei todas as minhas forças mentais no exercício do mover-me, tenho certeza que teria suado, se pudesse. Teria gritado se conseguisse. Minha garganta estava travada. A eternidade percorreu todo o tempo em que passei desprendendo-me do invisível. Arregalei os olhos, quando pude, e levantei-me num pulo, caindo no chão de atordoamento. Desde então, tive medo de voltar e dormir e acordar só com a metade de mim.

Os Elvis

O dia se desenrolava e o gato branco, recém chegado na nova casa, miava insistentemente para o relógio do rei que lhe dava o nome. Elvis, o relógio de parede, ficava no meu quarto, logo por cima da vastidão de minha cama. Tic-taqueava como presente de uma querida amiga. Achei engraçado o gato miando pro chará. Logo catei o bichinho pelo braço e o afastei do quarto para que não atrapalhasse minha leitura. Passados dois segundos, Elvis voltou a plenos pulmões. Subiu na cabeceira da cama, vidrado no relógio. Ri-me, perguntei-lhe o motivo daquilo, ele nem me olhou. Renovei a tentativa de removê-lo, que ele logo tratou de fazer falhar. Não parava de miar, alto, concentrado, como que preso por um fio invisível. Estranhei, finalmente. Larguei mão, acabei por me mudar de cômodo e deixei os Elvis na companhia um do outro. Fui dormir depois da meia noite.
Acordei, saí do quarto, encontrei minha mãe tomando café e lendo jornal. Ela logo me veio: filha, sabe o porquê de o Elvis estar miando pro teu relógio daquele jeito ontem? Porque, eu quis saber. Era aniversário de morte do rei. Meu gato nunca mais miou praquele relógio.

O que não cabe mais

Fazia alguns dias de noite que o Sol não ousava interromper para reluzir a neve. Nesses dias em que o mundo era inacessível, o lá fora respirava para dentro como um animal fadigado do tempo. O rapaz fragilmente magro que ali se habitava só movimentava seu corpo até onde seus próprios limites o encorajavam; o ar já não mais pertencia ao ambiente. Era sábado, possivelmente quarta-feira, não conseguia decidir-se. Seus poucos fios brancos - oriundos de trauma, não de velhice - pendiam por cima de seus olhos pesados. Há seis meses aquela casa lhe reservava seus cômodos confortavelmente fugidios. Num efeito reverso, pela primeira vez o conforto produzia um crescente incômodo quase com tom de conformismo. O limiar entre dormir e acordar estava fosco, ambos o sonho e a realidade eram como olhos fechados, como vozes emudecidas. Caminhava pelo chão frio sem perceber-lhe a frieza para comprovar a fuga covarde de todos os sentidos. Suas meias lhe saiam dos pés de propósito, movidas por uma entidade zombeteira. Os móveis o atravessavam com a mesma facilidade com a qual atravessariam o vazio. O rapaz já não tinha vontades. Sentia-se como um espectro invisível de algo que um dia existiu, mas que não mais relaciona manifestações vitais à própria vida. Quando tentava escrever, seus dedos cochichavam lentamente: não cabemos mais em suas mãos. Os horizontes das janelas eram as cortinas, e o além-mar os quadros envelhecidos na parede. Alguma coisa comprimia a existência contra sua própria pele. A fragilidade do rapaz estava prestes a romper com o que lhe impedia de ser lodo, romper com o que a separava dos bichos da terra. Os estalidos da escada estavam obrigando-o a transpor suas veias em carnes, suas carnes em ossos, seus ossos em pó. Seu corpo se arrastava para o fim do corredor. Precisava ir de encontro com o mundo bruto e não-lapidado que o excluía. Tropeçou. Escorregou em si mesmo. Rolou pela escada, que o engoliu e cuspiu seu esqueleto amarelado. A vergonha encardida do rapaz magro foi o que restou do confinamento de um homem.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Auto-sabotagem

Era terça-feira, dia no qual o céu costumeiramente borra suas cores e o café ritualisticamente borra o destino. Ariel e eu, para nos bandearmos em revolta contra nossas aulas irritantes de direção, subíamos o morro perto do Instituto de Pequenas Causas e nos sentávamos no bistrô com a intenção de nossas pretensões. Fazíamos questão de manter silêncio hermético durante todo o processo, interrompido somente para fazer o pedido à mocinha que nos atendia. Nossa comunicação era exclusividade de olhares de tão telepáticos quase magnéticos. Um expresso duplo com chantilly – que era pra ajudar a borra – e Ariel queria ser a primeira.
Gostávamos de predizer catástrofes. Ao menos um dia da semana precisava destinar-se ao inconcebível mundo catastrófico das pessoas felizes. Ariel, com jeito de catarse trágica, anunciou-me: vejo fogo, vejo destruição, vejo... Ó, vejo tormento! Abandonou a xícara na mesa e debruçou-se em minha direção, queria observar-me mais de perto. Prostrava um sorrisinho nos finos lábios e uma sobrancelha suavemente erguida. Senti-me desafiado. Que era inabalável, respondi, lhe disse que não me importava. Que estava sempre bem com a vida, completei. Ela largou-se na cadeira bruscamente e riu uma risada rápida, com espasmos de gargalhada enlouquecida. Empurrou sua xícara para mim, eu a apanhei. Disse-lhe sua mãe vai morrer, e, além disso, seu pai vai embora. Disse-lhe ninguém te vê diferente, você é invisível. O mundo está ficando velho, calei-me.
Ariel engolia minhas palavras, levou alguns segundos para energizar-se delas. Disse-me que colocaria uma música para dançar, dançaria com amigos, que nada é importante. Que a dor serve para ignorar e sentir havia se transformado em alegria. E então chorou pesadamente, de olhos abertos, alagados e incrivelmente pacíficos.
Olhei impaciente ao redor. Não tinha ninguém existindo. Todos estavam absurdamente satisfeitos e qualquer deles poderia – e com certeza topariam com torpor - posar para capa de um livro de auto-ajuda. Auto-sabotagem, Ariel me corrigiu, e não estranhei que ela tivesse me lido os pensamentos. Poderíamos certamente estar cercados por bárbaros. Homenzarrões musculosos, cujas barbas não tinham nada a temer, e, dessa forma, anulavam a própria suposta coragem. Nunca vi gente corajosa que não tivesse medo de escuro, disse. Ariel me sorriu em resposta. Levantei-me primeiro, ela copiou-me os movimentos, fomos andando para longe de nossas experiências de mulheres-maravilha, jovenzinhos badalados e velhos dentuços demais. Era longe, afinal, o lugar ao qual pertencíamos.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Um dia

Vivia um velho barbudo no dorso do rio. Era apaixonado pela correnteza, e ela por ele de volta. Num dia de sol baixo e poeiras visíveis, o velho subiu numa pequena canoa de madeira e deixou-se guiar pelos olhos do movimento da água, que era também o seu. Conversava baixo com o som do fluir e chorava para dentro do rio. Chorava de sentir, e não apenas de nome. As árvores caminhavam ao lado deles, algumas acenavam de simpatia. O sol ia bocejando, com sono, procurando unir-se ao abrigo da terra. A água derramada aclamava as pedras que, lá embaixo, esperavam-na. O velho contentava-se em sorrir melancolicamente, como se carregasse consigo uma certeza.
Na cabeça da cachoeira, braços abertos, o vento acolheu a velhice do velho num balão colorido. A canoa caiu, quebrou e voltou para o fundo do rio. O velho voou para as nuvens, ainda dava tempo de beijar o sol de boa noite.

sábado, 26 de março de 2011

We are drifting away

Algumas coisas acontecem em dimensões muito profundas da existência para que sejam transformadas em histórias. E aqui registro essa máxima como um contrato assinado pela literatura para me permitir delírios. Meu estilo inconcreto está, então, permitido, sem medo e sem bloqueios. Não estou para desafios, estou para desencontros.

Invasão: quantidade excessiva de informações de ordem sensorial a serem processadas pelo cansaço de um cérebro tumultuado. A hostilidade do mundo pretendia provar-se, tanto psicológica quanto fisicamente. Cutucava-me com força, sem espaço, como que para obrigar uma muito necessitada paz.
Atingir um devir, um transitar por. Não estar nas coisas, mas entre elas. Acalmar o pensar no pensamento. Sentir que as palavras brotam pelo meio junto do vento e sua capacidade relativizadora do tempo.
As palavras são, agora, como a grama, o caminho. É a anti-arborização deleuziana que transmuta meus símbolos, converge literatura e filosofia. Trata-se da percepção da naturalidade do filtro do leitor que cata símbolos em pés de palavras. Há tanto nesse ex-tumulto quanto há nas pessoas.
Aprendi a não evoluir, mas involuir na veracidade da transcendência do amor e da simplicidade. Aprendi que o nome das coisas é vazio, e Manoel de Barros me ensinou a enchê-los de abandonos, cultivá-los em ruínas, cuidar da transparência dos olhinhos semicerrados de uma menina que vê e desvê como as texturas e nuances da natureza. Como as cores que se espalham sem vergonha nos vazios dos nomes das coisas. Acontece, a partir daí, uma humanização da língua através da rostidade construída de buracos negros, muros brancos e desconstruções. Sim, tudo me vem torto, desnudo, cru e repetitivo. Não tem régua e não tem história, porque a história só é composta por fatos que descredibilizam aqueles realizados por dentro da minha fechadura.


sexta-feira, 11 de março de 2011

Cafeína: amor e ódio; dos efeitos e outras considerações

Meu corpo está num estado mórbido de exaustão, tanto que alcançar o costumeiro caderno vermelho e iniciar este quase que me foi um sacrifício. Cada palavra me dói num lugar diferente. Porque não dormir? Pense que horas são. Estou doente, vê. Daquelas gripezinhas bobérrimas, mas avassaladoras, que te fazem sentir o incômodo de sua existência física num mundo nada palpável. Ok, fui acordada a esta hora da madrugada com uma xícara bem servida de café quente. Mãe alegando "você não pode tomar xarope - com gosto de vinho doce e barato - se não colocar algo no estômago". Aham, sei. Qual o quê. Venho fazendo isso com o antiinflamatório para garganta e até hoje não morri. Era um antialérgico, ainda por cima, eu poderia estar dormindo perfeitamente dopada. Mas não. Estou analisando causas, efeitos, gostos e a maldita da dialética da linguística. Pausa para uma tosse e para perceber que a tinta da caneta está quase no fim. Pré-preguiça de buscar uma nova... Tenho certeza que o conteúdo deste (primeira palavra riscada, sinal de motor pifando) poderia estar sendo discutido via messenger com meu amigo abstrato de João Pessoa. O que me lembra que andei sonhando a noite inteira com redes sociais e pessoas se agredindo com bastões coloridos. Isso me incomodou tanto que tive que me levantar para ir ao banheiro e fazer uma nova bolinha de papel para distrair meu gato, Elvis Presley. Não conheço pessoalmente esse querido amigo intangível (primeira palavra acrescentada a esmo no rodapé, sinal de perda total). Comunicamo-nos unicamente via mundo virtual irreal, porque longe é um lugar que verdadeiramente não existe. A linguística me diz que a fala é totalmente diferente da escrita. São as variações da natureza humana versus o modelo fixo da perfeição. Lá no meu subconsciente - não digo inconsciente, afinal estou justamente conscientemente tomando nota dele - isso me faz morrer de amores. Falar, pra mim, é um sacrilégio. Quase morro. As palavras saem tão tortas que quase incoerentes, portanto a linda da linguística me faz uma defesa genuína. Quando eu e meu amigo irrealmente real nos esbarrarmos, o universo implodirá em uma sopa de letrinhas, a minha eloquência cairá por terra e a verdade da minha "meiguice" idiotária virá à tona. E então eu perderei um amigo só porque meu café estava ácido demais. Venho bebendo tal maravilhoso veneno negro desde os quatro anos de vivência, daí as pessoas supõem que podem me entupir dele. "Desce aqui, vamos tomar um café". É quase um complô. E aqui, pra mim, é o basta desse monólogo diarístico avulso entre meus inúmeros fluxos de pensamento. Quando chega na teoria da conspiração é definitivamente hora de parar. Espirro. Viu, pra quê ter medo das palavras? (Vi, no fim, que esse texto não ficou do tamanho quanto me pareceu. São distorções imaginárias de madrugadas matutínicas, creio. Ótimo, passei quase uma hora num fluxo de consciência constante e agora estou com taquicardia, um texto chocho e moralmente desequilibrada).

Da série "Monólogos Diarísticos e Outras Aparições Raras".
Manifesto Anti-auto-bullying:
Não se suprima!

quinta-feira, 10 de março de 2011

Movimento

O ser humano protagonista abre os olhos. Vê um parque colorido num tom meio pastel, algumas pessoas suavemente turvas passando ao longe, mas sorrindo. Anda um andar calmo, quase flutuante. Chega a uma ponte, olha para baixo, há um riacho passando tranqüilo. O barulho da água corrente supera a música ou se mistura a ela com a mesma intensidade. O ser humano que observa presta atenção no movimento da água. Vê as sombras de alguns peixes nadando por debaixo dela. Pisca. O ser humano vê um menino sentado na terra, embaixo de uma árvore, comendo uma melancia. Tudo é rústico, lembra uma fazenda. A melancia pinga, o ser humano se aproxima, os olhos se aproximam das gotas que caem e melam a mão do menino que come. Acompanham o movimento de uma gota, que escorre pela melancia, se desprende dela e vai caindo até atingir a terra. Pisca. O ser humano está olhando para outro, uma moça, bem perto dele. A moça tem olhos tristes, olhos chorosos, uma lágrima desce por sua face esquerda e passa por cima de suas sardas. O dedo do ser humano protagonista se ergue, enxuga as lágrimas e depois se aproxima de seus próprios olhos. A água das lágrimas molha o dedo do ser humano protagonista. Transição. A imagem da moça é o segundo plano e o dedo molhado é o primeiro. Pisca. Os olhos se abrem para um mar infinito, intimidante, calmo e movimentado, sereno e poderoso, bonito. O mar é num tom de azul-escuro-meio-cinza, o barulho forte de água agora mistura-se novamente à música, emocionante e variável. Ao fundo o barulho das gaivotas e ao longe um bocado delas sobrevoando o mar. O ser humano protagonista-observador olha, então, para seus próprios sapatos na areia - cuja superfície voa suavemente para a direita pelo advento do suposto vento representado em detalhes -, marrons, com cadarços finos e simples. Um cadarço está desamarrado, ele amarra. Pisca. Os olhos abertos vêem um gato branco manchado de cinza sentado no chão, encarando o observador. O gato sai para a esquerda em direção ao pote também branco. O ser humano observador se aproxima do gato, vê sua pequena língua se movimentando em direção ao pote, bebendo a água dentro dele. Algumas gotas respingam para cima, o gato está de olhos fechados e com uma possível expressão de serenidade e satisfação. Pisca. Os olhos abertos logo se semicerram. Está chovendo. O ser humano não corre, caminha pouco rápido. Sente sua respiração e o barulho dos seus passos na calçada. É uma fuga urbana, mescla de calçada, rua e árvore. É à noite. A iluminação dos postes deixa as árvores verde-escuras com pontos de luz laranja. O ser humano, ainda caminhando pouco rápido, levanta um pouco a cabeça e observa a chuva caindo do céu. Olha para a luz do poste e vê os pingos laranjas passando rápidos e caindo nas folhas volumosas. As árvores têm aspecto de molhadas e vivas. Quase atingido por um pingo que vinha em sua direção, pisca. Vê uma pia branca de banheiro com uma torneira ligada forte, a água está escorrendo num fluxo grande. O ser humano observador apóia as mãos na pia. Seu olhar se aproxima da água corrente e faz, com ela, o percurso. Focaliza primeiro a boca da torneira e vai descendo, junto com a corrente, mais devagar. Atinge o ralo da pia, olha um pouco mais de cima. A água desce pelo ralo, em seu típico movimento circular. A música altamente intensa é abruptamente interrompida. Desmaio. Os olhos se arregalam, acordando num susto. O ser humano vê que se encontra num campo marrom-meio-cinza, numa terra com poucas plantas apenas em galho vivo. Os olhos fazem uma panorâmica e vêem o horizonte de um céu branco. Não há azul, os tons pastéis estão mais cavernosos e sombrios. Música agora pouquíssima e melancólica. Não há vida; só há, ao fundo, um som constante de descoberta e de solidão. Pisca. A pia branca, a torneira aberta e a água escorrendo num fluxo forte. As mãos do ser humano observador se movem em direção à torneira, sempre muito lentamente. Fecham a torneira com convicção, com força. O ser humano ergue a cabeça e se vê no espelho sobre a pia. A feição dele, de um homem mais velho, pouco importa. O importante é ressaltar bem seus olhos verdes-meio-mel, tristes e comedidos. Estão pesados, cansados, velhos, mas  certos. Brilham de marejados para, então, fecharem-se com força. Fim.

Kids on the Run

Certas coisas neste mundo estão intimamente interligadas. Agora, a distância física é uma bobeirinha à toa e as barreiras comunicativas ultrapassam a arte do diálogo. Estamos inseridos numa bolha, num ar que possui massa faiscante. Nós, criaturas dotadas de percepção, transmitimos sensações em diversos formatos para vidas que são sem que as reconheçamos. Não distinguimos identidade, mas sentimos a força do receptor. Quem não se esconde de sua capacidade sensitiva não foge do mundo. A troca entre almas observadoras das mesmas substâncias é bonita.

Estou feliz por conceber a sua presença, receber as cores que emanam de ti, de uma felicidade não sinônima de alegria, mas de uma melancolia que arranca reações extremas. É o seu efeito em mim, desconhecido das palavras certas e das melodias harmônicas, dos traços concretos ou conceitualmente tremidos. Estamos aqui, conectados. Parte de você sou eu, e eu sou o mundo, querido que sem motivo aparente me lança olhares furtivos no ônibus de meio dia, querida que passa por mim sem medo de me sorrir, gato que me encara do outro lado da rua. Há pureza na concepção de existir. E ambos sabemos disso na nossa consciência inconscientemente compartilhada.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Nada

Estava com sede e bem longe da terra. Meu chão tremia e fazia consigo tremer uma grande quantidade de informações que adoravam brincar de roda. Minhas pernas sentiam dores existenciais e provocavam, assim, a necessidade de fluxos de pensamento existencialistas para ocupar o lugar de minha insignificância. As ruas extrapolam-se em número e meus sonhos aflitos estão apenas num ínfimo ponto de luz da incontável imensidão.

Absurdo

Já nem sei mais como sentir diferente. O preto está verde e o céu está branco. As nuvens estão planas e o plano é outro. O universo parece estar consumindo a terra, agora, só para enfeitar-se de roxo. Se tudo isso for água, então água é tudo que sou eu também. É difícil de acreditar que bebo, todos os dias antes de dormir, as nuvens do céu.

Um menino descalço acordou rodeado pelo conteúdo do copo que bebia. Estava numa quase representação do nada, mas, no fundo, sabia que aquilo era tudo exceto nada. Era a vida dele, de seus pais e irmãos. Era Fred, seu cachorro, e a namorada dele. O peito do pé do menino afundava nos algodões porque ele não aceitava sua textura original e pré-designada. Não aceitava que o branco fosse líquido e que o líquido flutuasse. Flutuou, então, o próprio garoto, que era tão líquido e azul quanto um pássaro ou um dia que amanhece. Ali, a quantidade excessiva de cargas positivas do mundo concreto não podia lhe atingir com seus corredores de plástico. O horizonte é que nunca ia sumir.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Ser

Havia uma moça no mundo. Uma única moça como aquela que vi passar naquele dia específico e inidentificável no tempo. Sua aparência não é relevante, mal me lembro a cor de seus cabelos. Não consigo me esquecer, porém, de como seus pés caminhavam verdadeiramente pisando nas pedras do chão, sem medo de sentirem-nas incomodar. Jamais deixarei de me recordar da forma como suas mãos, com leveza, pareciam tomar o lugar do vento, armazenando-o nas palmas apenas para contrastar o frio com o quente. Sempre terei como pronta a maneira com a qual ela jogava seus cabelos para trás sem tirá-los por inteiro do rosto, somente para que a textura de sua natureza não atrapalhasse seu encontro com o ar. Cheguei a pensar que fosse cega ou surda. Mas não, seus olhos simultaneamente fugazes e irresolutos captavam todos os movimentos do mundo. Seus ouvidos absolutamente atentos gateavam os sons da rua. Não sorria, parecia encontrar-se num estado atordoado de absorção. Não parecia poder acreditar na existência de seu corpo, humano, frágil e rígido. Não preparou-se para existir, e quando se viu existindo, perdeu o controle. Estava, então, num descontrole totalmente harmônico e delicioso. Atônita, linda, única por ser ela mesma num mundo em que ninguém mais se era.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Delírio

Alguns dias têm o Sol invisível. Alerta, constante, presente e vivo, porém desfigurado e deformado. 

O homem calvo levantou-se a pensar "amanhã será um bom dia", e o amanhã não alcançou o hoje. Passando o pente pelos braços, viu no espelho o reflexo de uma luz. Olhou para cima, viu um inseto, só. Sozinho. E viu-se no pequeno ser, que simplesmente era pelo teto do banheiro. 

"Existir não deveria dar tanto trabalho", lembrou-se de lembrar. 
"Estar sendo, apenas". Parecia uma ótima idéia. É falta de respeito desaprender a arte da auto-suficiência.
"Onde estão meus cabelos?", questionou-se. 
"Lá nos quinze anos...", esqueceu-se. Naqueles dias iluminados e quentes de sorrisos fáceis e gramas de tão verdes quase azuis. 
"Agora minha cabeça reflete uma lâmpada de banheiro", inconformou-se. 
"Ai, esses dias de aprendiz de violino...". Dói nos órgãos vizinhos.

O homem voltou-se para a grande e aberta janela de uma tentativa de sala de estar. Recordou-se daquela bola mágica que o velho tarólogo de olhos aquosos havia lhe dado. "É para refletir a luz do dia", intencionou o velho. 

sábado, 29 de janeiro de 2011

Cálcio

Pode até ser que eu esteja caindo na mesmice. Nem sei, mas pode ser. Isso, no atual ritmo da respiração do meu pulmão, pouco me importa. Meus bronquíolos estão se lixando. O que lhes falta é o ar essencial.
Achei que meu corpo fosse forte o suficiente para conciliar sua diversão e seu sustento. Não é. Eu e minhas próprias mãos devemos esfaquear meu tronco torto, não para tirar a vida do que quer que lá dentro viva, mas para abri-lo verticalmente num buraco profundo. Coisas precisam entrar e coisas precisam sair.

Fazia um sol semi-frio dentro do cansaço dos meus olhos poucos. Ossos precisam de cálcio para que não desabem veias e artérias frágeis, rompíveis. 

Exercício da óbvia dialética da informação

O mundo palpável transfigurou-se numa superficial máquina de informações. Lançá-las e capturá-las é parte de um processo tão mecânico que nem mais absorvê-las parece necessário. O consumo de informações de funcionalidade secundária é dono da importância?
Esquecemos-nos que somos, somos seres. A todo momento, em todo lugar, todos estão cheios da energia misteriosa e transparente que flui liquidamente. Senti-la é a importância de existir.
Informações são poeiras que nos ocupam a racionalidade, preenchem o objetivo em nós. Os sentidos, porém, nos ocupam a existência e arrepiam os pêlos dos nossos braços. Notar as notáveis cores que podemos cheirar é absolutamente mais absoluto que forjar-se numa vivência morta baseada em conhecimentos desconhecidos de uma verdade verdadeiramente instável.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Coragem

Falta verdade na ignorância confiada. Na atenção dada ao terceiro olho. O auto-reconhecimento é a base de todas as relações energéticas das nuvens que andam no céu. Não existe duplicidade. A vida, agora, é uma só para cada um de nós. Projete consequências. O futuro é o próximo presente. A escolha por aprender a lidar com o circundante engrandece o espírito.

Corpo Infinito

Não era uma vez só, a velha egocêntrica. Era muitas e repetidas vezes seus calos no pé esquerdo e joanetes dos tempos ruins. O hedonismo de sua ranzinice não abria espaço para que o Sol nas costas a invadisse a pele, o corpo, a coluna debilitada de idade. Ela recusava a cadeira de rodas com a mesma instabilidade que uma criança recusa um doce. Sair da cama era um conjunto de dias chuvosos, e por si só um amontoado de filmes russos e arrastados. O inspiro surgiria apenas quando o corpo fosse ao chão e as cores fossem ao cosmo. Se eu fosse poeta diria que ela se tornasse estrela. Sou sofrido, pois digo que ela morra. Com força e mais de uma vez. Não nego a certeza do infinito corpo. 

Ordinário

Se eu tivesse me sentado por debaixo do despencar de uma cachoeira teria algo pra te contar. Se tivesse suficiente coragem pra dizer causos de romance sem me sentir ridícula... Só pela palavra, vê. Vêm aqueles calafrios. Se tivesse salvado alguém. A verdade é que não vivo experiências à altura da quantidade de tinta nas minhas canetas pretas. Carrego comigo apenas meus olhos frágeis, meu corpo turvo e um edredom amarelo.

Era almoço e eu estava sozinha. Sozinha. Diante de mim um grupo incômodo ria alto. Alto demais. Ecoantemente alto. Não quero uma alegria dessas. Prefiro ser triste, nem que seja numa tentativa porca de me convencer. Não sei se estou com sono ou com uma nostalgia magoada. Uma mágoa nostálgica. Culpar o passado não convém, mas é tão conveniente... Ele insiste em acusar-se. Acusa-se preconceituosamente.
Vai aí uma dose de auto-crítica?
O pior é que eu conhecia algumas daquelas pessoas. Amigos de amigos, conhecidos de conhecidos. Impressões levam o verbo 'preocupar-se' a lugares abomináveis.  

sábado, 1 de janeiro de 2011

Cosmonauta

A parte possivelmente visível dos planos cosmo-sensíveis divide-se em três níveis psicossomático de percepção e funcionamento.

O chapeuzinho da laranja:
Certa vez no espaço e no tempo, numa esfera fogosamente congelante que flutuava pelo Universo, houve um evento engraçado chamado vida. Os resultantes bichinhos ambulantes e não-ambulantes infectados  desenvolveram-se, cada qual a seu ritmo, e tornaram-se concomitantemente cheios de frescura. Sinapse pra lá, circuito nervoso pra cá, ideias permeáveis escorrendo dedos afora pra acolá. Uma lenga-lenga que, através de signos linguísticos arbitrários determinou: complexidade é sinônimo de superioridade (ai, a burrice!). Então deu-se início à organização e dominação da praga do rei dos bichinhos frescos. Foi instaurado um sistema de regras cuja essência deveria ser coercitivamente internalizada pelo filhote ainda transparente e desprovido de cores. A normalidade e a anormalidade, o café e o leite, a moral e a anarquia, o câncer e o cisto, o esquerdo e o direito, o padre e o pastor, o indivíduo e o todo. É o reino das dicotomias ritualísticas que, dessa forma, apossam-se da tampinha da laranja.

O miolo e as sementes do miolo:
A grande consciência, dividida em minúsculas e inúmeras partes dependentemente independentes, subitamente enfoca sua majestosa existência na própria dúvida de existir. A mente é o filtro. As cores passam por redes inventivas astronomicamente diferentes, por cada semente do miolo da laranja. Uma coisa só não é uma coisa só. O invisível comunica-se com o visível, e então os bichinhos frescos e vidas menos exigentes surpreendem-se com o evento cósmico nada casual de cada indivíduo viver unicamente de uma única vez.

A ponta de baixo - o Fim e o Começo:
A poeirinha fisicoquimicobiológica explodiu e aí aconteceu a cabeça do alfinete, o material, o captável. Acolher a grama é como acolher as nuvens ou bichinho qualquer transeunte de G(M)aya. Aquilo que é palpável é inalienável e uno. Tudo é a mesma coisa. O cabelo é o céu e o gosto de sorvete é o nariz do gato que ronrona a música dos cometas que percorrem o inalcançável alcançável através do vento e do cheiro doce de lobina.

Carta de Artemis

Justine,

Escrevo-lhe apenas para lembrar-lhe. Lembrar-se é inefavelmente importante.

Felicidade excessiva é como dor de estômago, mas respirar o mundo e sentir-se ligado à terra é essencial para amar sem se perder.

Esse medo que me empurra as lágrimas e meu almoço tardio pela garganta me afasta da nobreza do espírito das partículas cósmicas; elas tentam, mas tornei-me temporariamente impenetrável. A dura epiderme endureceu desse medo transfuso em uma necessidade empática de sentir a c(d)or dos outros antes da minha. Queria passear pelo bosque de bétulas da conhecida mulher amora para enxergar através de seu corpo frágil e poderoso. O doloroso desapego viria como consequência da neve simbólica que cobriria a transfiguração do dito cujo sem enterrá-lo, mas apenas transformando-o em outra coisa que não um peso sem nome e sem pudor.
Cuidado com a vertigem.

Cuidado com o medo de si e de suas próprias palavras. Da insuficiência.

Estou há meses sem alimentar-me da minha percepção. Assim, sem caminhar compassadamente com a minha aura. Compasso é a representação do meu número um.

E você, como está?

Artemis.